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Category: AnônimoConteúdo sindicalizado

Anexo 2: Carta do Pe. des Graviers

Carta do Pe. des Graviers, aos Cardeais de Paris e Lyon  

            [O P. J.-E. des Graviers é um dos mais conceituados canonistas da diocese de Paris; daí o particular interesse da carta que a seguir transcrevemos.]

Paris, 2 de julho de 1988

 Senhor Cardeal,

 Li com muita atenção, tanto as declarações de alguns prelados, como os artigos de jornalistas na imprensa. Afigura-se que muitos parecem ignorar total ou parcialmente a História da Igreja, a Teologia Católica e o Direito Canônico.

 Escrevi a esse respeito ao Sr. Bourdarias, do “Figaro”, indicando-lhe dois cânones do novo Código, e aconselhando-o a lê-los e a dá-los a conhecer aos seus leitores. Não tive, até hoje, qualquer resposta, e não vi esses cânones citados no “Figaro”.

 Ei-los:

 Cânone 1323: “Não está sujeito a nenhuma pena aquele que, ao violar a lei ou ao preceito (...) 4.º proceder coagido por medo grave, mesmo que só relativamente, ou por necessidade ou grave incômodo, a não ser que o ato seja intrinsecamente mau ou redunde em dano das almas.”

 Cânone 1324, 1: “O autor da violação não se exime a pena, mas esta, imposta por lei ou preceito, deve atenuar-se ou em seu lugar aplicar-se uma penitência, se o delito for praticado: (...) 5.º por aquele que for coagido por medo grave, mesmo só relativamente, ou por necessidade ou por grave incômodo, se o delito for intrinsecamente mau ou redundar em dano das almas.”

 Sua Excelência Monsenhor Marcel Lefebvre indicou cabalmente as graves razões que o levavam a fazer as sagrações de bispos, e, como canonista, penso que não pode ser atingido por nenhuma pena.

 Dignai-vos aceitar, Senhor Cardeal, etc.

                                                                                                 J.-E. des Graviers

Anexo 1: A questão da consagração episcopal sem mandato do Papa

A QUESTÃO DA CONSAGRAÇÃO EPISCOPAL 
SEM MANDATO DO PAPA

 Prof. Doutor Rudolf Kaschewsky

1. A consagração de um bispo ocupa, na hierarquia das consagrações, o lugar mais importante; não há, com efeito, consagração para um cardeal ou para o Papa.

O bispo goza de dois poderes:

1) um poder de consagração;
2) um poder de jurisdição, que só pode exercer se estiver na posse de sua diocese.

2. Um bispo não tem autorização para conferir a ordenação episcopal a ninguém sem mandato do Papa (cân. 1013, CIC 1917). Aquele que agir em contrário, incorre em excomunhão, “latae sentenciae”, reservada a Sé Apostólica (cân. 1382, CIC 1983). A excomunhão “latae sentenciae” entra em vigor com o próprio ato, sem portanto ser decretada. Em semelhante caso, o direito antigo ameaçava o infrator unicamente de suspensão (“ipso jure suspensi sunt, donec Sedes Apostolica eos dispensaverit”, cân. 2370, CIC 1917).

Foi somente em 9 de agosto de 1951, por um decreto do Santo Ofício, que a sanção de excomunhão (“ipso facto”), reservada a Santa Sé “specialissimo modo”, foi introduzida para a consagração ilegal dos bispos, e isso devido, sem dúvida nenhuma, à trágica evolução da Igreja na República Popular da China. Essa sanção foi mais tarde confirmada, em seqüência das atitudes da seita de Palmar de Troya (Espanha).

3. Por outro lado, o direito canônico está longe de julgar as coisas unicamente segundo os aspectos exteriores. Seria, com efeito, contradizer a concepção jurídica corrente, não ter em conta as circunstâncias particulares ou a disposição subjetiva da pessoa em causa.

No caso de uma consagração episcopal sem mandato do Papa, a ameaça de sanção corresponde aos termos do cân. 1382; trata-se realmente da sanção de um ato. Aqui aplica-se, no entanto, o princípio: “A sanção de um ato não é executória se existe circunstância atenuante legalmente estabelecida.”

Tem de ser considerado especialmente o estabelecido nos cân. 1323 e 1324 (CIC 1983), aos quais corresponde o cân. 2205, 2 e 3 (CIC 1917). Trata-se de saber se um ato ameaçado de sanção existiu unicamente para evitar um grave inconveniente ou para suprir uma necessidade.

Citamos um extrato do cân. 1323, 4 (CIC 1983): “Não está sujeito a nenhuma pena aquele que, ao violar a lei, procedeu coagido por necessidade.” No mesmo sentido se exprime o velho Codex (cân. 2205, 2) (sobre as restrições mencionadas nos dois casos, veja o parágrafo 7, adiante).

4. Que se entendo por “grave inconveniente” e por “necessidade”?

Citaremos o manual de direito eclesiástico de E. Eichmann (Kl. Morsdorf): “O grave inconveniente ou a necessidade é uma situação constrangedora tal, que, sem que haja falta, a pessoa molestada é física e moralmente obrigada a desrespeitar uma lei para afastar o perigo (Necessitas non habet legem). Pode tratar-se de uma ameaça relativa a bens espirituais, à vida, à liberdade ou outros bens terrestres.”

5. Está estabelecido em geral – e não é seriamente posto em causa por ninguém – que, devido às orientações tomadas após o Concílio, pode verificar-se, no seio da Igreja, uma ameaça séria aos bens espirituais, no que respeita à formação de padres, à Fé, à Moral, às celebrações religiosas. A prova desta afirmação encontra-se em numerosas publicações, entre as quais, e principalmente, a nossa revista “Una Voce-Korrespondenz”.

O problema é saber se pode e como pode ser combatida essa ofensa aos bens espirituais. Ninguém pode negar que um meio (e não o único) de curar os males de que sofremos consiste no despertar das vocações sacerdotais e na formação de bons padres. Não é raro acontecer que jovens teólogos nos perguntem qual dos seminários diocesanos será mais recomendável, quer dizer, aquele em que a adaptação corruptora ao espírito do mundo ainda não tenha entrado, onde seja ensinada prioritariamente a verdadeira vocação religiosa, onde a adoração de Cristo no Santíssimo Sacramento do Altar seja o cerne da vida sacerdotal, onde a comunhão de joelhos e o uso da batina sejam naturais (isto para falar também dos sinais exteriores que são sempre indício de uma disposição interior). E a resposta é: nenhum seminário atual.

6. Assim, a situação de grave inconveniente e de necessidade está suficiente, clara e indiscutivelmente estabelecida. Para ultrapassar esse situação verdadeiramente perigosa, são corretamente formados, fora dos seminários oficiais, candidatos ao sacerdócio, candidatos que, de outro modo, nunca seriam ordenados, quer dizer, não poderiam tornar-se padres.

Encontramo-nos assim numa situação de necessidade tal, que qualquer sanção está excluída. Só a consagração de um bispo que possa ordenar esses candidatos ao sacerdócio pode afastar o perigo descrito. Com efeito, não estariam apenas perdidos os estudos desses candidatos ao sacerdócio e a sua formação sacerdotal, mas os fiéis deles dependentes não beneficiariam dos bens espirituais que poderiam receber. Porque os fiéis, por seu lado, também se encontram em situação de “perigo”.

Claro que seria exagero dizer que em nenhuma igreja oficial pós-conciliar se ministram os bens espirituais necessários à salvação das almas; mas a atual situação de desamparo lança os fiéis na incerteza de saberem se determinada catequese ou determinado serviço religioso que lhe propõem ainda são verdadeiramente católicos ou se não são.

Observadores moderados e objetivos da atual situação da Igreja confessam igualmente que, em determinados locais, a verdadeira intenção do padre, absolutamente indispensável à validade de um sacramento, é duvidosa ou está claramente ausente.

7. No cân 2205, 2 (CIC 1917), a ameaça de sanção nessa circunstâncias (estado de perigo, situação de perigo) só é levantada quando se trata de uma lei puramente eclesiástica e não de direito divino. Essa restrição não se encontra no novo Código (1983), e como os que querem falar de direito nessa circunstância se servirão, sem dúvida nenhum, do novo CIC, a restrição mencionada não será considerada como critério de julgamento, mesmo que quem procedesse à ordenação de um bispo sem mandato a isso se sentisse ligado.

[Nota: É de direito divino que o poder de instituir bispos pertence ao Sumo Pontífice. Porém, Cajetano faz notar, no seu, “De Romani Pontifici Institutione” (cap. XIII, ad 6), que importa distinguir entre o poder do Sumo Pontífice e o exercício desse poder, cujo modo pode variar no decorrer dos tempos. As instituições dos bispos feitas durante a vacância da Santa Sé, e consideradas válidas, explicam-se dessa forma. O modo fixado por Pio XII para o exercício do poder pontifical é regido pelas leis do direito canônico, e, portanto, aqui aplicam-se as normas do direito, explicadas nesse estudo]

8. Outra restrição: Apenas situações de necessidade de caráter acidental livram da sanção, quer dizer: inconvenientes que estão normalmente relacionados com o cumprimento de certas leis devem ser aceitos e não autorizam a transgredir a lei. Esta restrição não se aplica aqui em nosso desfavor, precisamente porque é não habitual (é acidental) e não natural no sumo grau que o respeito da lei em causa – abster-se de consagrar bispos sem mandato do Papa – provoque uma situação de perigo. O fato de a salvação das almas ser posta em perigo por causa da abstenção da referida consagração de bispos não constitui (em todo o caso na natureza das coisas) uma situação de perigo ligada normalmente ao cumprimento da lei, mas caracteriza a anormal situação atual.

9. Uma outra restrição consiste no fato de a ação ameaçada de sanção ter sido efetuada para afastar uma situação perigosa. Ela não é, no entanto, isenta de sanção se for intrinsecamente má ou redunde em dano das almas (cân. 1324, 1, no. 5). No antigo direito, os limites da dispensa da sanção eram ainda mais reduzidos (cân. 2205, 2); a ação que levasse ao desprezo da Fé ou da hierarquia era, em todo o caso, condenada.

O problema é saber se uma ordenação episcopal sem mandato do Papa é uma ação má em si (“intrinsece malum”) e redunda em dano das almas. Isso vai, indiscutivelmente, para além do direito da Igreja e, pelo menos, escapa ao juízo puramente jurídico, e é precisamente aí que as opiniões divergem. Uns falam de um enorme dano das almas, por causa do perigo de cisma; outros, de uma ação inelutavelmente necessária à salvação das almas.

10. No entanto, não é preciso dar resposta a esse problema, porque o cân. 1324, 3 (CIC 1983) constata de modo lapidar: nas circunstâncias descritas no parágrafo 1, o contraventor não incorre em sanção. Por outras palavras, isso significa: mesmo que pretendessem que a ordenação episcopal sem mandato do Papa constituísse automaticamente, em qualquer caso, uma ação punível por si mesma, ou que redunda em dano das almas, ficaria, de qualquer maneira, livre de toda a sanção imediata, dada a situação de perigo descrita.

Daí que, com base na situação de perigo indiscutível (cân. 1323, no. 4; 1324, 1, no. 5 e 1324, 3), a ameaça de excomunhão prevista no cân. 1382, para o autor de uma consagração episcopal não autorizada, não se aplica.

11. Mesmo que quisessem pôr em dúvida a situação de perigo como foi descrita, convinha verificar o seguinte:

Ninguém pode negar que um bispo, nas circunstâncias acima referidas, consagre outro, considera, pelo menos subjetivamente, que existe uma situação de necessidade que redunda ao dano das almas. Daí conclui-se que não se pode falar de violação premeditada da lei, porque quem vai contra a lei, acreditando, mesmo sem razão, na justa razão da sua ação, não age de uma forma premeditada. O novo direito da Igreja exprime-se ainda com maior clareza:

a) Não está sujeito a nenhuma pena aquele que, ao violar a lei ou o preceito, julgou, sem culpa, existir alguma das circunstâncias referidas nos nos. 4 ou 5 do cân. 1323, 7.

b) O autor de uma violação não está isento de punição, mas a pena prevista pela lei ou preceito deve ser atenuada, ou substituída, por uma penitência, se o delito foi cometido por quem, por um erro mas com culpa, julgou existir alguma das circunstâncias referidas no cân 1323, 4 e 5 (cân 1324, 1, no. 8)

Mas mesmo que alguém quisesse dizer que ele tinha interpretado a situação de perigo (na realidade inexistente) de uma maneira punível, isso implicaria que:

1) a excomunhão não se poderia fazer como mencionado no cân. 1382;
2) por outro lado, uma eventual pena que um juiz pudesse aplicar deveria, de qualquer maneira, ser mais clemente do que prevista pela lei, de forma que, também nesse caso, a excomunhão não seria de considerar.

12. Em resumo:

A) Devido à existência de uma real situação de perigo, aquele que ordenasse um bispo sem o fazer em nome do Papa, não seria passível de sanção nas circunstâncias descritas.

B) De igual modo, se a situação de perigo não existisse de maneira objetiva, o contraventor ficaria isento de qualquer sanção, dado que teria considerado subjetivamente, e de uma maneira não culpável, que o perigo de fato existia (cân. 1324, 1, no. 5).

C) Também é preciso dizer, que mesmo havendo suposição errada e punível da existência de um perigo, tal não implicaria, no entanto, sanção e, menos ainda, excomunhão (cân 1324, 1, no. 8, 3).

RESULTADO

A opinião muitas vezes formuladas de que a ordenação de um ou vários bispos sem mandato pontifical implicaria automaticamente a excomunhão e conduziria ao cisma, é falsa. Tendo em conta os próprios termos da lei, uma excomunhão no caso de que tratamos não pode ser aplicada, nem “ipso facto”, nem por decisão de um juíz.

            BIBLIOGRAFIA

CIC 1917: Codex Iuris Canonici Pii X Pontificis Maximi, Typis Polyglottis Vaticanis, MCMLVI (Estado do Vaticano, 1956).

CIC 1917: Codex Iuris Canonici. Codex des kanonischen Rechtes. Lateinisch-deutsche Ausgabe. Verlag Butzon & Becker Kevelaer, 2. verb. U. vermehrte Aufl., 1984.

Eichmann-Morsdorf, Lehrbuch des Kirchenrechts, I. Band, Paderborn, 8. Aufl., 1953, p. 396.

“Osservatore Romano”, Deutsche Wochenausgabe, l. Oktober 1976, p. 3

J. Listl, H. Muller, H. Schimtz, Handbuch des Katholischen Kirchenrechts, Regensburg, 1983, p. 931 f.

III. Band, Prozess-und Strafrecht, Paderborn, 10. Aufl. 1962, p. 314.

“Una Voce-korrespondenz”, 18/2, Marz-April 1988.

Uma excomunhão contestada: alguns fatos e pontos inamovíveis

2 - Uma excomunhão contestada

 

2.1. Alguns fatos e pontos inamovíveis

 

Os fatos

Numa "pequena tese de licença" em direito canônico, discutida e aprovada pelo maior número de votos, em julho de 1995, na Pontifícia Universidade Gregoriana, o sacerdote americano (não "lefebvriano") Gerald Murray defendeu que a excomunhão latae sententiae, declarada há tempo contra D. Lefebvre, D. Mayer e os quatro bispos consagrados por D. Lefebvre sem mandato pontifício, não é válida em questão de estrito direito canônico nem o é a imputação de cisma em sentido formal. A "pequena tese" não foi publicada. Contudo, está à disposição uma síntese suficientemente clara dela com largas citações de trechos, que apareceu na revista americana The Latin Mass (número de outono de 1995), juntamente com uma entrevista com o Pe. Murray. Outras entrevistas do mesmo e resumos daquela síntese apareceram depois em outras publicações 1.

Entrementes, porém, verificaram-se dois fatos: 1) a retratação parcial feita pelo Pe. Murray da própria tese (no verão de 1996); 2) a manutenção das motivações da excomunhão num texto apresentado cerca de um ano depois, como parecer do Conselho Pontifício para a interpretação dos textos legislativos.

Na suposição de que este último órgão tivesse emitido (digamos "tivesse" porque o texto difundido é, em realidade, anônimo), órgão que não é fonte de direito, mas que se qualifica como verdadeiro e próprio órgão técnico designado para a interpretação das leis da Igreja, a "tese Murray" nem mesmo é tornada em consideração pelo seguinte motivo: "É impossível avaliar a 'tese Murray' por não ter sido publicada, ao passo que os dois artigos [de revista - n.d.t.] publicados sobre ela são confusos"2.

A publicação das teses dos doutorandos em direito canônico é talvez contrária à praxe da Universidade Gregoriana? É-se obrigado a discutir argumentos científicos baseando-se no que aparece a respeito deles em artigos de revista, mesmo se nada existe realmente de confuso, como afirma aquele órgão pontifício, ao mostrar, de qualquer modo, conhecer a "tese Murray", desde o momento em que rejeita desdenhosamente, como veremos, até a simples hipótese da invalidade da excomunhão papal. A satisfação duma justa exigência científica teria indubitavelmente reclamado a publicação da pequena tese do Pe. Murray. O fato de não o ter feito torna provavelmente mais fácil a remoção do ponto de vista nela defendido, como se nunca tivesse existido.

Pode-se, pois, observar que o Pe. Murray publicou a sua retratação um ano antes do aparecimento do parecer atribuído ao Conselho Pontifício. Por que este último deveria tomar em consideração argumentos já formalmente, embora parcialmente, retratados pelo seu autor? E retratados antes ainda que um público mais vasto tivesse podido apropriar-se dele com um detalhado conhecimento de causa.

 

Os pontos inamovíveis

Todavia, tudo isto não impede de estabelecer alguns pontos inamovíveis.

1.Quaisquer que sejam as mudanças de opinião do Pe. Murray sobre o seu próprio trabalho, e os motivos pelos quais não lhe foi concedida ou encorajada a publicação, permanece o fato de que o trabalho foi aprovado com o maior número de votos pelos professores da Universidade Gregoriana, recebendo deste modo uma sanção científica de toda a consideração, a qual nenhuma autoridade ou mudança, ocorrida após o fato, podem invalidar. Esta sanção é tida na devida consideração 3.

2. O extrato da "tese Murray" aparecido em The Latin Mass é suficiente para se fazer uma idéia sobre ela, para compreender o que o sacerdote americano, com o código de direito canônico na mão, nega ou, se se prefere, põe em dúvida a validade da excomunhão ipso iure, aplicada a D. Lefebvre, porque este agiu em estado de necessidade (mesmo se, conforme o Pe. Murray, de necessidade putativa) e sem realizar nenhum cisma. Segundo este sacerdote é preciso reconhecer que, com base no direito canônico vigente, a excomunhão de D. Lefebvre é substancialmente inválida, e o cisma não subsiste. Uma tese indubitavelmente corajosa e, sobretudo, fundada no direito, embora não estejamos de acordo com a hipótese do Pe. Murray, segundo a qual D. Lefebvre pôde enganar-se em boa fé sobre a existência do estado de necessidade que o autorizava a proceder às consagrações. Em qualquer caso, a retratação do Pe. Murray após o fato, diz respeito somente à inadmissibilidade do estado de necessidade, não à existência dum cisma em sentido formal.

  1. 1. Referimo-nos a Gaps in the New Code? [lacunas no novo Código de Direito Canônico?] Entrevista do Pe. Murray seguida por uma exposição bastante detalhada da sua tese: Cisma. Excomunhão e a Fraternidade de São Pio X, a cuidado de S. Terenzio, respectivamente nas pp. 50-55 e 55-61 de The Latin Mass, Fall, 1995. Para uma ulterior entrevista ao Pe. Murray: 30 Giorni, no. 4. abril, 1996, pp. 17-18. Para um resumo do apanhado, The Latin Mass: Compte Rendu, publicado no Boletim Paroquial de Nossa Senhora du Pointet, em 1996.
  2. 2. Enfoque do Conselho Pontifício para a interpretação dos textos legislativos em La documentation catholique, 79 (1997), 2163, de 6 de julho de 1997, pp. 621-623. A retratação do Pe Murray se encontra no The Latin Mass, Summer. 1996, pp. 54-55. O "enfoque" foi traduzido para o italiano no il regno-Documenti. no. 17, 1997, pp. 528-529. A este propósito se lembra que a Carta aos amigos e benfeitores, no.53 da Fraternidade Sacerdotal São Pio X de 23/09/1997, faz notar que o "enfoque" e um documento coevo da Congregação da Fé sobre a situação canônica dos "lefebvristas' apresentados por D. Brunner, bispo atual de Sion, como expressão do magistério, seja realmente sem assinatura (isto é anônimos), sem data e sem número de protocolo. Por conseguinte, é licito considerá-los como documentos atribuídos ao magistério, mesmo se, a bem ver, não se lhes pode atribuir nem mesmo um valor oficioso. Tomamos estes documentos em consideração sobretudo como reveladores da hostilidade persistente do episcopado francês e suíço para com a Fraternidade Sacerdotal São Pio X.
  3. 3. Este aspecto foi sublinhado pelo Pe. Michel Beaumont no artigo O Pe. Gerald Murray bate com o martelo nos dedos, aparecido num número de Fideliter de 1997, pp. 41-46, fortemente crítico da "retratação" do estudioso americano: "Mas é a aprovação explícita dada pela mais alta instância universitária católica, a Universidade Gregoriana de Roma que confere a este trabalho um valor excepcional". Este valor, evidentemente, não pode diminuir em conseqüência duma retratação (entre outras coisas, parcial). Doutro modo se deveria dizer - coisa totalmente absurda - que os professores da Gregoriana, que conferiram a licença ao Pc Murray erraram e deveriam, também eles se retratar da sua aprovação científica! (Sobre a tese do Pe. Murray, ultimamente: Fr. Albert, O.P. La Thèse de l'abbé Murray in Le Sel de la terre no. 24, printemps 1998, pp. 50-67.

A ilusão de Ecclesia Dei Adflicta

1.2. A ilusão de Ecclesia Dei Adflicta

 

O Motu Proprio Ecclesia Dei Adflicta

Mas, por que este Motu Proprio deu vida a uma ilusão? Consideremos atentamente os fatos. Emanado a 2 de julho de 1988, como se fosse um comentário da excomunhão de Dom Marcel Lefebvre, apenas declarada (cf. o §3 do presente ensaio), o documento advertia todos os que, até aquele momento "estavam ligados de qualquer modo, ao movimento criado por D. Marcel Lefebvre” se dessem conta do seu dever de não apoiar de nenhum modo o dito "movimento"1. Ao mesmo tempo lhes estendia a mão. Como? No parágrafo 5o. do documento, o Papa manifestava a vontade, à qual pedia se associassem os Bispos e todos os que estavam investidos do ministério pastoral na Igreja, conforme a qual se facilitasse aos fiéis que "se sentem ligados a formas litúrgicas e disciplinares anteriores na tradição latina", a "comunhão eclesial" graças a medidas capazes de garantir o respeito das suas "justas aspirações"2. Para isso, o papa estabeleceu, no parágrafo 6o., a constituição duma Comissão presidida por um cardeal (Comissão Ecclesia Dei) e composta pelos membros da Cúria, encarregada de colaborar com os órgãos competentes e os ambientes interessados para facilitar a "plena comunhão eclesial" de sacerdotes, seminaristas, comunidades religiosas e indivíduos até então ligados à Fraternidade Sacerdotal São Pio X que desejassem permanecer unidos ao Sucessor de Pedro "conservando a sua tradição espiritual e litúrgica à luz do protocolo subscrito pelo cardeal Ratzinger e por Dom Marcel Lefebvre a 5 de maio de 1988"3.

Este famoso protocolo de acordo, embora depois não tenha entrado em vigor, constituía, portanto, a base jurídica para organizar as posteriormente chamadas "Comunidades Ecclesia Dei", ou seja, as "comunidades" (em geral sociedades de vida apostólica) compostas inicialmente de trânsfugas da Fraternidade São Pio X, às quais se reconhecia o privilégio de celebrar a Missa dita de São Pio V e de manter "as formas litúrgicas e disciplinares precedentes". Entre as primeiras e mais conhecidas estão a abadia beneditina de Santa Madalena do Barroux e a Fraternidade São Pedro. Segundo fontes da Fraternidade São Pio X, a autonomia reconhecida a estas instituições é, de qualquer modo, bem limitada, sob diversos aspectos4. Aqui se pode recordar um ponto importante: no protocolo de 5 de maio de 1988, a Santa Sé reconhecia a "utilidade" da nomeação dum Bispo "membro da Fraternidade São Pio X"5. Isto significava que, em principio, ela tinha aceitado a sagração dum Bispo fiel à tradição. Tendo mantido o protocolo de acordo como base para o reconhecimento das "Comunidades Ecclesia Dei", pesa ainda sobre a Santa Sé a promessa oficial então subscrita: para estas Comunidades deveria haver logo a sobredita sagração, mas, até agora nem sombra dela: a promessa não foi mantida 6.

 

Um indulto gravemente condicionado e sem razão de ser

Voltemos agora ao texto do Motu Proprio. Concluindo as suas instruções, o Papa afirmava ser preciso respeitar o "desejo espiritual" dos fiéis "que se sentem ligados à liturgia latina, aplicando de modo amplo e generoso as diretivas adotadas a seu tempo pela Sé Apostólicapara o uso do Missal Romano segundo a edição típica de 1962"7. A que se referia o Papa? Ao famoso indulto Quattuor abhinc annos, emanado em 03/10/1982 da Sagrada Congregação para o culto divino, já citado por nós, o qual estabelecia para os sacerdotes e fiéis, que não tivessem feito o pedido ao respectivo Bispo, a possibilidade de receber o privilégio de celebrar a Missa assim chamada tridentina e de assistir a ela. Naturalmente, a concessão do privilégio era subordinada a condições como as seguintes: que os requerentes aceitassem "a legitimidade e correção doutrinal do missal romano promulgado pelo Pontífice Romano Paulo VI"; que tais celebrações se realizassem "somente para a utilidade dos requerentes" e nos lugares de culto e nas condições estabelecidas pelo Bispo. As igrejas paroquiais eram excluídas da concessão do privilégio, exceto em casos extraordinários 8.

O exercício do privilégio era, portanto, submetido a notáveis limitações e os Bispos se mostraram logo surdos aos pedidos dos fiéis 9. A isso se acrescenta que os fiéis ligados à Tradição continuavam a freqüentar em grande número as Missas celebradas na Fraternidade São Pio X. Então, o Papa, em 1986, empossou uma comissão de 8 cardeais da Cúria, encarregados de examinar a Situação e preparar "normae" que estabelecessem uma nova regulamentação do Indulto, válida para toda a Igreja. Estas normas, porém, Jamais foram promulgadas 10.

O conceito talvez mais importante expresso naquela comissão refere-se, como se sabe, à questão da supressão ou não, por Paulo VI, da assim chamada Missa tridentina; segundo aqueles cardeais, Paulo VI jamais a suprimiu formalmente pois "nenhum Bispo tem o direito de impedir um sacerdote católico de celebrar a Missa tridentina"11.

Este parecer, que se mostra canonicamente carente de exceção, sem querer, esvazia o significado do próprio indulto. De fato, se a Missa tridentina nunca foi supressa formalmente e, por isso, continua a existir como liturgia perfeitamente válida na Santa Igreja, celebrá-la e assistir a ela é um direito e não um privilégio. Em vista disso, o Indulto de João Paulo II, que concede o privilégio para ela, é canonicamente supérfluo.

 

A resistência passiva dos Bispos e a interpretação da Santa Sé

Como quer que seja, o convite enviado pelo Papa aos Bispos para serem "generosos" em conceder a permissão de celebrar a Missa tridentina, não foi acolhido. Isto é um fato inegável que, entre outros, sobressai com extrema clareza, do considerável volume da Enquête citada na nota 9. Os Bispos fazem ouvidos de mercador. Ao mesmo tempo, o pedido daquela Missa parece aumentar talvez porque os fiéis estejam fartos da "anarquia litúrgica" que, graças à Missa de Paulo VI, reina em quase todas as paróquias, especialmente na França e não só nesta (variam o grau e a intensidade, mas a anarquia é atualmente universal).

Contudo, a atitude dos Bispos contradiz a da Santa Sé apenas aparentemente. Este é o ponto. A Santa Sé fez promessas que depois não manteve (por exemplo, a nomeação do Bispo "tradicionalista"). Instituiu a comissão cardinalícia, como se viu acima, mas as suas normae, válidas para toda a Igreja e com uma nova regulamentação, jamais foram promulgadas 12. Não só. Ao presidente de Una Voce, que a 13/10/93 pedia ao Papa para que quisesse autorizar livremente, para toda a Igreja, a Missa e os Sacramentos segundo o rito antigo, contornando assim a resistência passiva dos bispos, Mons. Giovanni Battista Re, substituto, na primeira seção dos negócios gerais da Secretaria de Estado, respondia a 17/01/94 que "Ecclesia Dei" tinha concedido o uso do missal romano "em certas condições": "As diversas disposições tomadas depois de 1984 visavam facilitar a vida eclesial dum certo número de fiéis, sem, contudo, perenizar as fórmulas antigas anteriores. A lei geral é a de usar o rito renovado depois do Concílio, para o qual o uso do rito anterior deve ser entendido a modo dum privilégio, com caráter excepcional"13.

O escopo da Ecclesia Dei era, portanto, somente o de "facilitar a vida eclesial" aos fiéis apegados à Tradição, mas não se queria "perenizar" o antigo rito. Que significa esta expressão? Que o antigo rito era tolerado provisoriamente para não ofender a sensibilidade de certos fiéis, mas não podia considerar-se um rito destinado a permanecer. A cláusula da carta era extremamente clara no seu propósito: tendo rendido uma homenagem formal à "salvaguarda dos valores que constituem um patrimônio precioso para a tradição litúrgica da Igreja", o documento prosseguia afirmando com extrema clareza que "o primeiro dever de todos os fiéis é o de acolher e aprofundar as riquezas de significado encontrados na liturgia em vigor e de fazê-lo em espírito de fé e obediência ao Magistério, evitando toda a tensão danosa à comunhão eclesial. O Santo Padre - concluía - deseja que vossa associação contribua para este fim"14.

 

Um "parêntese de tolerância"

O texto de Mons. Re pode ser entendido sem mais como uma interpretação autêntica do Motu Proprio Ecclesia Dei. Este último não pretendeu, de fato, restabelecer o antigo rito, e ainda menos num plano de igualdade com o novo. Tratou-se apenas dum gesto "pastoral" do Papa nos confrontos da "sensibilidade" de certos fiéis apegados ao passado. Um "parêntese de tolerância"15. que não tem em vista "perenizar" o rito antigo na liturgia oficial da Santa Igreja. Os fiéis devem, ao invés, saber que o seu dever é o de seguir o novo rito pois esta é e continua sendo a vontade do Papa. A importância deste documento, interpretação oficial do Motu Proprio, é confirmada pelo tato de os Bispos a citarem freqüentemente, ao se recusarem a conceder a Missa com o Indulto16. Do ponto de vista da hierarquia atual, a Missa tridentina com o Indulto seria, portanto, nada mais que um parêntese destinado a fechar-se um dia. Por isso, dizemos que a Ecclesia Dei é uma ilusão que criou outra, na qual caíram todos os que esperavam que o atual Pontífice quisesse efetivamente restabelecer o antigo rito da Missa, com igual dignidade relativa ao outro.

Mas já se avizinha o dia do brusco despertar. Demonstram-no os pedidos feitos à "comunidade Ecclesia Dei" por Mons. Perl, secretário da Comissão Ecclesia Dei, num documento do verão deste ano (1998), certamente para celebrar dignamente o décimo aniversário. Mons. Perl pede que, nas Missas tridentinas celebradas com o Indulto, o oficiante esteja doravante sentado durante a leitura da Epístola; que o Prólogo do Evangelho de São João, no fim da Missa, seja abolido; que se comecem a recitar, durante o Santo Sacrifício, as assim chamadas "orações universais"17.

É uma tentativa impressionante para mutilar o rito tridentino e contaminá-lo com o de Paulo VI. De fato, por que motivo o sacerdote deveria estar sentado durante a Epístola, quando jamais se viu coisa semelhante? É o sacerdote presidente da missa protestantizada sentado enquanto leigos de toda a espécie (senhoras, moças, escoteiros, pais de família etc) lêem os trechos do Antigo e do Novo Testamento inseridos na assim chamada liturgia da palavra e quase sempre de modo a fazer corar até as paredes da igreja! Requerendo que o oficiante da Missa tridentina fique sentado durante tais leituras, enquanto aqueles estejam de pé, é evidente que se pede, sem o dizer, a presença de qualquer outro, a não ser o oficiante para aqueles atos. Quem? Um leigo? Uma mulher? Uma religiosa?

E por que se quer a supressão do último Evangelho? Que desagrado causa? É claríssimo: trata- se dum texto de modo nenhum ecumênico! De fato: 1) reafirma a natureza divina de Cristo; 2) recorda que o mundo e os "seus", isto é, os judeus, "não o receberam"; 3) relembra que o mundo é inimigo de Cristo (razão para quem se converte); 4) recorda o pecado dos Judeus contra o Espírito Santo, coisa que eles não gostam de lhes ser lembrada; 5) proclama os cristãos superiores aos filhos de Abraão por serem eleitos "filhos de Deus" graças à fé em Cristo. A assim chamada "oração universal" é, enfim, concebida segundo diversos formulários, que introduzem explicitamente na Missa o espírito "ecumênico" como o pretende a "Igreja conciliar", nascida do Vaticano II18. A circular de Mons. Perl demonstra que a Santa Sé decidiu abreviar o tempo: o recreio acabou. Anunciam-se tempos duros para as "Comunidades Ecclesia Dei" (salvo seus ulteriores compromissos). Os seus superiores tentarão talvez resistir e defender a Missa de sempre dos cortes e das contaminações. Mas conseguirão isto? E até quando? Teriam feito melhor não se deixar seduzir há dez anos e dar atenção a quem, com o código de direito canônico na mão, apontava então a invalidade patente daquelas condenações, agora aventada mesmo pela Universidade Gregoriana (v. §2 deste ensaio e §3 no. 11).

O presente trabalho espera dar um contributo à verdade e concorrer, com o auxílio de Deus, a fazer dissipar a nuvem de mentiras e falsas interpretações que ainda circunda a figura e a obra de D. Lefebvre.

  1. 1. Citamos o texto publicado em Enquête, CII. Apêndice, pp 373-4.
  2. 2. Ibidem, p. 374.
  3. 3. Ibidem.
  4. 4. Fratenité saint Pie X. Bulletin Officiel du District de France, no. 29, de 29/09/1988 para alguns detalhes do acordo entre D. Gerard e Roma, por ocasião do reconhecimento da abadia do Barroux.
  5. 5. Nós nos referíamos ao texto citado em apêndice na Enquête, cit. na p.379.
  6. 6. O fato foi notado por M. de Jaeghere na sua Intervenção relatada em Enquête, cit. na p.  279.
  7. 7. Texto em apêndice a Enquête, cit., p 374.
  8. 8. Texto citado em Enquête, cit. p. 375.
  9. 9. Ensaio introdutório a Enquête, cit.: Ecclesia Dei? Advertência histórica. p.12-55, p. 38.
  10. 10. Um resumo destas normae, devido ao Dr. Eric de Saventhem, ex-presidente de Una Voce, é trazido em apêndice na Enquête, cit.. p. 391 23) A opinião dos cardeais foi unânime: Enquête, cit., p. 38. A fonte da informação é o cardeal Afonso Stickler, em La Nef (1995), 53.pp. 8-11 (ver. nota no. 54 em p. 53 da Enquête). A revista reproduz uma entrevista do cardeal a The Latin Mass, de 1995.
  11. 11. Enquête, cit., p. 264 e também pp. 103, 261,.274.
  12. 12. Aqui, dentre as 6 normae, apresentamos as três primeiras no resumo citado: "1. Nos ofícios do rito romano. deve-se atribuir à língua latina a honra que lhe compete. Os Bispos devem fazer com que nos domingos e dias festivos seja celebrada ao menos uma Missa em língua latina em todas as localidades importantes da sua diocese. Todavia. as feituras da Missa poderão ser feitas em língua vulgar 2. Todos os sacerdotes podem dizer, em qualquer tempo, as suas Missas particulares em latim. 3. Para toda Missa rezada em latim - estejam ou não presentes os fiéis - o celebrante tem o direito de escolher livremente entre o Missal de Paulo VI (1970) e o de João XXIII (1962) [que é considerado a última edição típica do Missale Romanum codificado por São Pio V" (Enquête, p. 391). A norma no. 3 parece tornar universalmente livre a possibilidade da celebração da Missa dita de São Pio V, transpondo os limites postos pelo Indulto. Compreende-se porque uma normativa deste gênero jamais tenha sido promulgada: esta teria demonstrado abertamente o malogro da reforma litúrgica pondo em crise o "espírito do Concílio”.
  13. 13. Texto em apêndice a Enquête, cit., p. 385. O Dr. Saventhem replicou com outras duas cartas sem resposta. Na primeira escreveu, entre outras coisas: "aquilo a que os fiéis assistem não é outra coisa mais que as inumeráveis formas diferentes de celebrações eucarísticas que proliferam na Igreja desde 25 anos, reclamando, com legitimidade mais ou menos fundada, das diversas Edições nacionais do Missal romano de Paulo VI e das múltiplas oposições ai encontradas ... Na maior parte das paróquias, estas celebrações foram simplesmente impostas, razão pela qual os fiéis, desencorajados, não tinham outro modo de "recusá-las" a não ser o afastamento silencioso ... Enfim, está demonstrado por todas as sondagens destes últimos 25 anos que se deve dar conta duma erosão progressiva da fé mesmo entre aqueles que ainda freqüentam as igrejas Uma vez que a lex credendi segue a lex orandi, não é preciso, então, concluir que a fé não é mais nutrida pela liturgia reformada ou que precisamente esta última acelerou a perda da fé?" (Enquête, cit., p 387).
  14. 14. Enquête, cit., p. 385.
  15. 15. A expressão é do Pe Claude Barth, Enquête, cit., p. 249.
  16. 16. O testemunho é do Pe. Jean Paul Argouac'h, superior de uma das "Comunidades Ecclesia Dei": o Instituto de direito pontifício "Santa Croce" de Riaumont: Enquête, CII., pp. 90-91.
  17. 17. Tudo isto ressalta do boletim Inter multiplices, Una Vox, junho de 1998.
  18. 18. Veja-se, por exemplo, o Missal festivo dos fiéis. Anno A-B-C, texto oficial da C.E.I (Conferência Episcopal Italiana), a cuidado de G. Boffa, com apresentação de Mons. Mariano Magrassi, Coletti ed .. Roma 1984, p. 869.

Com a manutenção da Santa Missa de sempre se mantém o dogma

1. Introdução

1.1. Com a manutenção da Santa Missa de sempre se mantém o dogma

D. Lefebvre e os assim chamados "Lefebvristas" Há dez anos, Sua EX.a D. Lefebvre. no octogésimo terceiro ano de sua vida, sentindo aproximar-se a hora da morte, sagrou 4 bispos sem esperar pelo mandato pontifício (prometido em extenuantes tratativas, mas sempre adiado ou submetido a condições) com o fim de assegurar a sobrevivência da Fraternidade São Pio X, benemérita congregação fundada por ele em novembro de 1970 a pedido de seminaristas franceses para conservação da sã doutrina católica, dos seminários nela inspirados, e da Santa Missa do assim chamado rito tridentino. Em conseqüência disto, ele - já considerado "rebelde" por ter se recusado a fechar a Fraternidade como lhe havia imposto arbitrariamente o Ordinário do lugar (D. Marmie) e suspenso "a divinis" por ter igualmente ordenado sacerdotes os seminaristas ali acolhidos - foi imediatamente declarado excomungado ipso facto com a dupla imputação de ser desobediente ao Papa e cismático 1.

Com esta excomunhão, a Santa Sé baniu D. Lefebvre e a Fraternidade fundada por ele. Em torno dos assim chamados "lefrevistas", clérigos e leigos, se fez um vazio. Dizemos "assim chamados lefebvristas" porque não existe, nem jamais existiu um "lefebvrismo". De fato, não existe uma "doutrina" de D. Lefebvre. Tentou-se e ainda se tenta fazê-lo passar por "cismático" ou mesmo "herege", como a qualquer "excomungado" que se considere tal, mas tais imputações, oferecidas à imaginação coletiva, são inteiramente falsas como bem sabe quem tenha estudado os fatos.

D. Lefebvre jamais foi o cabeça duma seita nem quis constituir uma, nem se considerou o chefe dos "tradicionalistas" em geral. O seu pensamento religioso, que ressalta de seus sermões e dos vários escritos exegéticos e homiléticos, é totalmente ortodoxo e penetrado dum zelo ardente pela Verdade católica. Ele foi marginalizado e perseguido porque quis ficar fiel, na fé e nas obras, à doutrina constante da Igreja, sem acepção de pessoas. Os "lefebvristas" não são outra coisa que católicos fiéis ao dogma, isto é, ao que a Igreja ensinou por quase vinte séculos até o Concilio Vaticano II exclusive. Eles não são tradicionalistas, mas fiéis à Tradição, por ser esta, no Catolicismo, exatamente a fidelidade ao dogma consagrado pelo Magistério da Igreja.

 

Um rito litúrgico adulterado

Quem quer ser fiel ao dogma, em obediência ao principio de salvação enunciado por Nosso Senhor depois da Ressurreição: "Sê fiel até à morte e te darei a coroa da vida" (Ap 2, 10), não pode aceitar as novidades subversivas surgidas no Vaticano II e até deve duvidar da validez deste último. Uma assembléia ambígua, sobre a qual pesa uma grave suspeita de invalidez porque constituída conforme uma intenção espúria (o aggiornamento, a abertura ao mundo) a qual nunca foi a da Santa Igreja; por se ter autodeclarado somente pastoral (e não também dogmática, como seria obrigatoriamente) e por isso, titular dum magistério espúrio; por estar disseminada de graves ambigüidades e erros na doutrina, a começar pela definição “ecumênica" da Igreja Católica (que não se quer fazer coincidir com a única Igreja de Cristo) para acabar na "colegialidade" de tipo democrático ou semi-conciliarista e na liberdade de tipo liberal jacobino 2; este o último Concílio, em cujo "espírito" foi depois concebido e executado o Novus Ordo Missae, a "Missa de Paulo VI", planejada matematicamente para ser aceita pelos hereges protestantes. Isto é tão verdadeiro quanto o fato de 6 pastores protestantes terem participado ativamente na elaboração dela. Trata-se dum rito teologicamente incerto, necessariamente ambíguo, visto que não deveria desagradar aos hereges.

 

O povo "celebrante"

Não obstante as correções feitas na primeira edição escandalosa de 1969, após criticas indignadas e documentadas de teólogos e estudiosos, avalizadas pelos cardeais Bacci e Ottaviani, nota-se igualmente no texto definitivo de 1970, a presença de conceitos protestantes (e, por conseguinte. heréticos). Principalmente a tendência a equiparar o sacerdócio ministerial ao dos fiéis, inserindo estes últimos na celebração do Santo Sacrifício, para efetivamente se realizar aquela "concelebração" de sacerdote e "povo", já condenada por Pio XII com a máxima clareza na encíclica Mediator Dei 3. Em conseqüência disto, o sacerdote não é mais exclusivamente o ministro da Eucaristia (como foi ensinado e definido pelo Magistério durante séculos); ao invés, todo o "povo de Deus" se torna ministro, que "faz subir até Deus as preces de toda a família humana", como se exercesse uma sorte de mediação sacerdotal com relação a toda a humanidade (inclusive, portanto, os não católicos, os descrentes e ateus) 4.

Assim a Santa Missa, oração sacerdotal do "povo de Deus", adquire um significado ecumênico no sentido do Vaticano II, e, por conseguinte, heterodoxo: o "povo de Deus" tende a identificar-se com a humanidade, realizando a identidade do gênero humano, da qual a Santa Missa se tornaria um momento Importante! 5

Neste rito, portanto, se encontra uma desvalorização do ministério do sacerdote e uma concepção errônea do sacerdócio comum dos fiéis, porque o sacrifício expiatório celebrado pelo oficiante é concebido como sendo celebrado pelo povo que "só ele, goza dum verdadeiro poder sacerdotal, enquanto que o sacerdote age unicamente por oficio confiado a ele pela comunidade", segundo a tese herética já condenada por Pio XII na Mediator Dei (D. 3000). O texto do qual isto ressalta, de modo mais claro, é o famigerado artigo 7° da Institutio do Novus Ordo de 1970, no qual se ousou escrever: "In Missa seu Cena Dominica populus Dei in unum convocatur, sacerdote praeside personamque Christi gerente, ad memoriale Domini seu sacrificium eucharisticum celebrandum": "Na Missa, ou ceia do Senhor, o povo de Deus se reúne, sob a presidência do sacerdote, que age em lugar de Cristo, para celebrar o memorial do Senhor ou sacrifício eucarístico". Por isso: 1) o oficiante, embora representando a pessoa de Cristo, é apenas o presidente da assembléia, como se fosse um "ministro protestante", dado que 2) é a Assembléia que se reúne para "celebrar" o memorial do Senhor (contra toda a tradição da Igreja). Ademais, 3) o memorial do Senhor é chamado chamado "sacrifício eucarístico", mas não "propiciatório" (coisa que seria desagradável aos protestantes) onde não se assegura absolutamente que o texto pretenda, com efeito, exprimir a idéia de "sacrifício expiatório", como requer peremptoriamente o dogma da fé.

 

Uma "presença real" ambígua

E isto não acaba aqui, porque o resto do parágrafo deveria expressar o dogma da transubstanciação, a qual, ao invés, jamais é mencionado (os protestantes a negam), mas substituída por uma ambígua "presença real". O texto, efetivamente, assim continua: "Por isso,

para esta reunião local da Santa Igreja, vale de modo eminente, a promessa de Cristo: "Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, Eu estarei no meio deles" (Mt 18, 20). De fato, na celebração de Missa, durante a qual se perpetua o sacrifício da Cruz [notai bem: não só "se perpetua", mas também "se renova" n.d. t.], Cristo está realmente presente na própria assembléia reunida em Seu nome, na pessoa do ministro, nas suas palavras e, além disso, de maneira substancial e permanente sob as espécies eucarísticas"6. Aqui se vê que a "presença real" não é reservada mais somente à presença que resulta da transubstanciação, mas se estende à "presença" (não sacramental) de Cristo na "assembléia", na "pessoa do ministro", nas "suas palavras", e a própria presença "de maneira substancial e permanente" debaixo das espécies eucarísticas depende, conforme o texto, não da transubstanciação (da qual não se fala), mas do fato de estar a assembléia reunida "em nome" de Cristo.

Tudo isto não lembra a consubstanciação dos hereges luteranos, os quais negam, como é sabido, que a Santa Missa renova realmente o sacrifício expiatório de Nosso Senhor no Calvário? 7 A falta de referência à transubstanciação permite, portanto, compreender por que se suprimiram todos os sinais tradicionais da fé na presença efetiva de Cristo na hóstia consagrada: desde a douração interna dos vasos sagrados até a recepção da Santa Comunhão de joelhos, etc 8.

 

Uma "fé" de novo tipo

Nas invocações e preces da Santa Missa, desapareceu a SS. Trindade (os protestantes liberais não gostam dEla; os judeus e muçulmanos a detestam), à exceção obrigada do Credo: a SS Trindade é substituída por um anônimo "Deus do universo", que pode ser o Deus de qualquer religião! Enquanto isto, se revelou arbitrária a inserção na assim chamada "liturgia da Palavra" dum trecho do Antigo Testamento, ao lado das passagens das Epístolas e do Evangelho, porque é sabido que o oficiante quase nunca consegue dominar, na homilia, uma matéria tão vasta que é omitida com facilidade. Grande parte das homilias tem um conteúdo justicialista, político, já estereotipado, capaz de fazer inveja à assim chamada prece da sexta-feira dos muçulmanos (para os quais a religião faz um todo com a política).

Como D. Lefebvre já acentuou muitas vezes, o novo rito é uma "adulteração" da verdadeira Santa Missa católica. Um rito desta natureza que precisamente pelo seu caráter contaminado e "adulterado" não desagrada aos hereges protestantes e até aos não cristãos, como pode ser certo para os católicos? A que católicos pode agradar? Uma missa que, na prática, é freqüentemente também inválida, com engano dos fiéis, porque muitos sacerdotes que a celebram, professam agora a fé ensinada a eles no seminários atuais ou então a absorveram num ambiente poluído de liberalismo e modernismo; uma fé que, certamente não é mais a fé católica mas uma fé de tipo novo, ecumênico; conservando embora vestígios da fé católica, é, na realidade, sincretista e envenenada de heresia. Nela o culto da Humanidade e o diálogo com o Erro são postos ao lado da adoração à Santíssima Trindade, quando não tomam claramente o lugar dela.

Um rito litúrgico adulterado faz correrem graves perigos os que o freqüentam, e por isso esta "missa" é certamente um dos frutos mais amargos do Vaticano II. Mas toda a Catolicidade oficial, que sobrevive às custas da ambigüidade e das repetidas (mesmo se não unânimes) infidelidades, mostra os sinais dum corpo gravemente doente, juntamente com sociedades e nações outrora cristãs, afligidas por uma forte baixa de natalidade, pelo espírito de rebelião, por todos os vícios e corrupções, seduzidas pelas falsas religiões e seitas mais variadas e invadidas agora ininterruptamente pelos muçulmanos.

 

O mérito de Dom Marcel Lefebvre

Criando o vácuo em torno de D. Lefebvre com uma excomunhão totalmente arbitrária, porque o venerando prelado tinha agido num evidente estado de necessidade e sem qualquer intenção cismática, a autoridade vaticana pensava talvez ter conseguido destruir o bastião da fidelidade ao dogma, representado pela Fraternidade São Pio X. Se houve esta intenção, ela foi desmentida pelos fatos. Não obstante dificuldades materiais de todo o gênero, a Fraternidade conta hoje 350 sacerdotes, dos quais cem franceses 9. Ela é viva e próspera, mantendo os seus cinco seminários espalhados pelo mundo. Agradecemos cordialmente a Deus por este fato.

Há vários anos, o cardeal Ratzinger manifestou, numa entrevista, a sua admiração pela Fraternidade se ter mantido e perseverado. Talvez se teria admirado mais ainda com saber, há três anos, que um trabalho cientifico, aprovado pelos professores da Universidade Gregoriana, considerava juridicamente inválidas tanto a excomunhão declarada contra D. Lefebvre, como a imputação de cisma. O tempo, como se costuma dizer, faz justiça.

Os católicos fiéis ao dogma sabem que podem assistir, nas igrejas e capelas da Fraternidade, à verdadeira Missa católica (à "Missa de sempre", porque o seu rito remonta aos primeiros séculos do Cristianismo), com o grande e inestimável benefício decorrente para a sua alma, sem estarem constrangidos a reconhecer contra a consciência "a legitimidade e correção doutrinal" do missal promulgado por Paulo VI 10, como, ao invés, acontece a quem assiste à Missa Tridentina concedida com o indulto de João Paulo II, no qual se encontra formulada exatamente esta condição. Trata-se dum reconhecimento que, embora implícito, é perigoso para a salvação das almas, já que a "correção doutrinal" da Missa de Paulo VI é, como se viu, extremamente duvidosa.

Não sabemos se a falta de correção doutrinal seja tal que leve a considerar a priori inválido o novo rito. Não temos autoridade para pronunciar um juízo definitivo e dirimente sobre a matéria. Saibamos, porém, que, se somos obrigados a salvar a nossa alma, devemos evitar o novo rito, evitá-lo a todo o custo, com os seus sacerdotes super-politizados, e o ambiente mundanizado que o circunda. E saibamos dever o beneficio inestimável de poder assistir à Santa Missa verdadeiramente católica à luta benemérita e tenaz pela defesa do dogma empreendida, naquele tempo, por D. Lefebvre e D. Mayer (os únicos Bispos que o defenderam sem temor) e pela Fraternidade Sacerdotal São Pio X, fundada pelo primeiro. Agradeçamos, por isso, ao Deus Onipotente e esperemos com fé inabalável na obra de Deus o dia no qual a Santa Sé, de volta à doutrina de sempre, anulará as condenações injustamente infligidas na hora das trevas.

Até lá agradeçamos ao Senhor por nos ter salvo das seduções postas em prática pela autoridade formalmente legitima, para reconduzir ao "redil" aqueles que se obstinam em preferir a verdadeira Missa católica à feita por Paulo VI.

Aludimos ao Motu Proprio Ecclesia Dei Adflicta, emanado do atual Pontífice [N. da P., trata-se do Papa João Paulo II] por ocasião da excomunhão inválida de D. Lefebvre. O documento faz também o seu décimo aniversário, objeto de declaração quase triunfalistica por parte de alguns. Segundo estes, o sucesso das assim chamadas "comunidades Ecclesia Dei", constituídas segundo as diretivas e as promessas no Motu Proprio papal, resultaria já do fato de ter subtraído da Fraternidade São Pio X dez sacerdotes e vinte seminaristas em 1988 e (dizem) "quinze membros entre padres e seminaristas" há algum tempo 11. Em suma: 15 sacerdotes e 30 seminaristas no espaço de dez anos. Gloriar-se com estas cifras significa não ter o senso do ridículo. De resto, o cardeal Gagnon, após ter visitado a Fraternidade em 1988 e ter aí encontrado tudo em ordem, não tinha previsto que "80% dos fiéis haveria de abandonar a Fraternidade no caso de consagrações ilícitas"? 12 Pelo contrário, ela resistiu, com perdas insignificantes. E se mantém firme, há dez anos, agradando a Deus, não obstante a concorrência das "Comunidades Ecclesia Dei".

  1. 1. Sobre este ponto, prometemos voltar em outro número.
  2. 2. Sobre a possível invalidez do Concílio Vaticano II, remetemos a "Concílio ou conciliábulo? Reflexões sobre a possível invalidez do Vaticano II" de Canonicus, em Sì sì no no. 1997 (XXIII), nn. 3. 4 e 6.
  3. 3. Cf. AAS 1947, p. 553, citado em Arnaldo Xavier da Silveira, "La Nouvelle Messe de Paul VI: Qu'en penser?", tradução francesa do português por C. Salagnac, Chirê-en-Montreuil, 1975, p. 103. Esta obra, que desenvolve uma analise fundamental do Novus Ordo Missae de 1969 e 1970, contém, numa versão melhorada, três estudos feitos em 1970 e 1971. A análise do Novus Ordo de 1970 está nas pp. 100-124. Utilizamo-nos largamente deste trabalho bem como do de Romano Ameria, Iota Unum, Milão-Nápoles, 1986, 2a ed. cap. XXXVII e XXXVIII, p 496- 548.
  4. 4. La Nouvelle Messe de Paul VI, cit., pp. 103-105. O texto do Novus Ordo em questão se encontra no art. 5o. do Prólogo do mesmo.
  5. 5. Sobre a Idéia espúria de unidade do gênero humano atribuído erroneamente como fim da Santa Igreja pelo Vaticano II, cf. P. Pasqualucci, Un'intrusione laica nel Vaticano II: il concetto de unità del genero umano, em Sì sì no no 1998 (XXIV) no. 11.
  6. 6. "In Missae enim celebratione, in qua sacrificium Crucis perpetuatur, Christus realiter praesens adest in ipso coetu in suo nomine congregato, in persona ministri, in verbo suo, et quidem substantialiter et continenter sub speciebus eucharisticis". O texto latino do art. 7o. é referido em La Nouvelle Messe de Paul VI, cit. no. 46, p. 117 e comentado nas pp. 117-120.
  7. 7. La Nouvelle Messe de Paul VI, cit. Ibidem e no cap. V Le nouvel ordinaire de la Messe et le repas protestant.
  8. 8. Para um elenco pormenorizado, cf. Breve exame critico do Novus Ordo Missae, s d. (maio 1969), pp. 20-21.
  9. 9. Dados fornecidos pelo Pe. Pierre Maria Laurençon, desde 1996 superior do distrito da França da Fraternidade São Pio X, em Enquête sur la Messe traditionelle, 1988-1998. Dixième anniversaire du Motu Proprio Ecclesia Dei, número especial de La Nef, 1998, a cuidado de Chr. Geffroy e Phil. Maxence, p. 284.
  10. 10. Indulto Quattuor abhinc annos de 03/10/1984, item "a" (texto em apêndice a Enquête, cit, p. 375).
  11. 11. Declarações do Pe. Josef Bisig, primeiro superior geral da "Fraternidade São Pedro" referido em Enquête, cit., pp. 95 e 97.
  12. 12. Enquête, cit. p. 321.

Estudo Canônico das Sagrações Episcopais de 1988

ESTUDO CANÔNICO DAS SAGRAÇÕES EPISCOPAIS DE 1988

"Uma excomunhão NULA, um cisma INEXISTENTE"

Reflexões Feitas 10 Anos Após as Sagrações de Écône

Uma preciosa contribuição à história da "Reforma Litúrgica" de Paulo VI

Agosto 12, 2018 escrito por admin

Um testemunho direto

“Il card. Ferdinando Antonelli e gli sviluppi della riforma litúrgica dal 1948 al 1970” [O cardeal Ferdinando Antonelli e os desenvolvimentos da reforma litúrgica de 1948 a 1970] de Nicola Giampietro O. F. M. Cap. (ed. Studia Anselmiana, Roma) é uma preciosa contribuição à história da “reforma litúrgica” de Paulo VI.

Relator geral da “Seção Histórica” dos Ritos, criada por Pio VI, membro da Comissão Pontifícia para a Reforma Litúrgica, instituída por Pio XII, de 1948 a 1960, Promotor Geral da Fé a partir de 1959, na Sagrada Congregação dos Ritos, perito e secretário da Comissão da S. Liturgia no Concílio Vaticano II, enfim membro do Consilium ad exsequendam constitutionem de Sacra Liturgia, o Pe. Antonelli, O.F.M. Cap. É uma testemunha direta desta sadia renovação litúrgica que estreou sob o reinado de Pio XII, mas já estava na mira de São Pio X e de Pio XI.

Peça mestra, no governo de Pio XII, do restabelecimento da Vigília Pascal (1951) e da reforma litúrgica da Semana Santa (1955), o Pe. Antonelli nutriu, logo de início, a ilusão de que o Concílio iria conduzir felizmente ao porto esta prudente reforma litúrgica que havia dado seus primeiros bons frutos no tempo de Pio XII, o qual parecia ter endireitado com a encíclica Mediator Dei a barra do “movimento litúrgico”, corrigindo os seus desvios e disciplinando as suas tendências aberrantes (v. Enciclopédia Cattolica, verbete Mediator Dei).

Quando Paulo VI, a 4 de dezembro de 1963, promulgou a constituição conciliar sobre a liturgia, o Pe. Antonelli escreveu na sua agenda: “Os ossos de São Pio X devem ter exultado. A Constituição da Liturgia não é outra coisa que o fruto precioso duma pequena semente que ele lançou” (op. cit., p. 204).

 

As primeira dúvidas

Numa conferência de 8 de dezembro de 1964, contudo, o Pe. Antonelli já parecia perplexo: ele se pergunta se este momento histórico representa uma ocasião favorável para a realização da reforma litúrgica e responde: "Eu não sei... talvez algumas coisas precisavam de mais maturação" (p. 208). Entrementes, a aplicação da Constituição conciliar foi confiada ao famoso Consilium. A 3 de março de 1964, após uma conversa com o cardeal Larraona, prefeito da Sagrada Congregação dos Ritos, o Pe. Antonelli anota na sua agenda a perplexidade comum deles: "A aplicação da Constituição litúrgica é entregue ao "Consilium ad exsequendam Constitutionem". Ora, até se provar o contrário, a Congregação [dos Ritos] é o órgão de governo: se se cria um outro órgão de governo, daí resultará uma confusão" (p. 227, nota 12).

 

O "método de trabalho" do "Consilium"

Após a primeira reunião do Consilium, escreve o Pe. Antonelli "grandes programas, mas a realização não será tão fácil" (p. 228). Ele crê ainda que se trata de trabalhar com ponderação, no respeito prudente da tradição litúrgica, como outrora no tempo de Pio XII, mas bem depressa ele perceberá que não é mais assim. 

"Não estou entusiasmado com os trabalhos ― escreve ele depois da Segunda reunião dos consultores ― ... um grupo de pessoas muito incompetentes, e mais ainda, avançadas nas trilhas das novidades. Discussões inteiramente de vanguarda, à base de impressões, desejos caóticos. O que mais me desagrada é que as atas do que é exposto e as questões correspondentes estão sempre numa linha avançada e freqüentemente numa forma sugestiva. Direção fraca" (p. 229).

Esta primeira impressão negativa se confirma na Segunda reunião do "Consilium". "Entretanto, todas as coisas avançadas aqui passam ― escreve o Pe. Antonelli ― porque nisto está o clima do "Consilium"; há, em seguida, uma grande pressa de se atirar para a frente e não se dá tempo para refletir; [...] Não deveria haver tanta pressa. Mas os espíritos estão excitados e querem atirar-se para a frente" (p. 229).

Dúvidas apoderam-se novamente do Pe. Antonelli, por exemplo, sobre a concelebração (p. 230) e, após a terceira assembléia do "Consilium", retorna a dúvida radical sobre a oportunidade duma reforma litúrgica neste momento histórico particular: "Não gosto do espírito demasiadamente novidadeiro, nem o tom das discussões, muito expeditivas, e às vezes tumultuosas; não me agrada o fato de o Presidente [Lercaro] não fazer todos os participantes falarem, pedindo a cada um o seu parecer. Em conclusão, as coisas que devem ser levadas a seu termo são importantes e eu não sei se a hora é oportuna" (p. 230).

Após a Quinta sessão ou assembléia, o Pe. Antonelli se mostra seriamente "preocupado" com o "espírito inovador" dos membros do Consilium:

"Foi uma sessão construtiva. Mas o espírito não me agrada. Há um espírito de crítica e intolerância para com a Santa Sé que não pode conduzir a bom termo. E, ademais, um estudo muito acentuado de racionalidade na liturgia, e nenhuma preocupação com a verdadeira piedade. Temo que num dia se deva dizer de toda esta reforma [...]: "a liturgia tomou tudo e a devoção se afastou"" (p.234).

 

Preocupações doutrinais

Mas não é somente a devoção que está em jogo. Quando, na sétima assembléia, se discute sobre o rito das ordenações sacerdotais, o Pe. Antonelli "nota com surpresa que, entre os deveres dos sacerdotes, não está mencionado o seu compromisso principal: sacrificium eucharisticum offerre" (p. 236).

No mesmo momento o retém um acidente, devido à incompetência do "corpo judiciário" e à "pressa em avançar". Mas o discurso de Paulo VI, a 19 de abri de 1967, o obriga a reflexões mais graves sobre as responsabilidades deste Papa: "Paulo VI se declarou contristado porque se faziam experiências caprichosas na Liturgia e mais aflito ainda por certas tendências para uma dessacralização da Liturgia. Contudo, ele reconfirmou a sua confiança no "Consilium". E o Papa não percebe que todas as desgraças vêm da maneira com que se organizaram as coisas nesta reforma pelo "Consilium" (p. 237, seg) e apesar disto ― notou logo no início o Pe. Antonelli ― "é certo que Paulo VI seguia atentamente os trabalhos deste "Consilium"" (ibid). O método de trabalho, ou antes, a ausência de todo método de trabalho no "Consilium", não cessa de espantar o Pe. Antonelli. A 23 de abril de 1967, ele anota na sua agenda: 

"... os esquemas se multiplicam sem chegar a uma forma verdadeiramente pensada... O cardeal Lercaro não é homem para dirigir uma discussão. O Pe. Bugnini só se interessa por uma coisa: atirar-se para a frente e acabar. O sistema de votação é pior. Ordinariamente os votos são dados com a mão levantada, mas ninguém conta quem levanta a mão e quem não o faz; ninguém diz: tantos aprovam e tantos não. Uma verdadeira vergonha. Em segundo lugar, jamais se pode saber, e a questão foi posta muitas vezes, que maioria era necessária: maioria de dois terços ou maioria absoluta [...] Um outro defeito grave é a ausência de processo verbal das sessões, ao menos nunca se falou dele e certamente jamais foi lido".

 

Uma "continuação do Concílio" ou ainda o Concílio permanente

Finalmente, depois de três anos de anarquia, ou antes, de ditadura do Pe. Bugnini, o "Consilium" pensa em se dar "Estatutos" e o seu esboço é apresentado a Paulo VI, o qual, por sua vez, o passa, para se fazerem observações eventuais ao Pe. Antonelli. Este que, além de seu mandato de membro do "Consilium", é também o Secretário da Congregação para os Ritos, submete as suas "Observações" ao cardeal Larraona, prefeito desta Congregação, e depois as remete a Paulo VI. Nas suas "Observações gerais", o Pe. Antonelli sublinha que "uma inquietude notável a respeito destas mutações contínuas está muito espalhada numa grande parte do clero e dos fiéis" e que "este estado de instabilidade e de incerteza sobre o futuro, favorece os abusos e diminui sempre mais o santo respeito das leis litúrgicas". Além disso, ele realça a anomalia de "dois órgãos da Santa Sé que se ocupam da vida litúrgica, a Sagrada Congregação dos Ritos e o "Consilium"". Nas "observações particulares", em seguida, o Pe. Antonelli nota que, segundo os estatutos, os membros do "Consilium", "inclusive os Cardeais", serão nomeados na percentagem de 4/5 pela Presidência e somente 1/5 pelo Papa, e isto é inadmissível; "este sistema ― escreve o Pe. Antonelli ― é absolutamente novo e não é outro senão uma continuação do Concílio, coisa sem precedente na história, porque ― mesmo depois dos Concílios de Trento e do Vaticano I, uma vez terminado o Concílio foi a Santa Sé que recuperou sua plena autoridade.

O Pe. Antonelli pede também nas suas observações que se fixe finalmente o sistema de escrutínio, porque ― escreve ele ― "até agora... bastava que um certo número levantasse a mão para se ir adiante, sem que ninguém contasse quantos aprovam ou não. E durante este tempo se faz freqüentemente apelo a um voto afirmativo, sem que ninguém possa provar que ele tenha sido verdadeiramente afirmativo".   

Após as observações do Pe. Antonelli, a questão do "Estatuto" se atola. Paulo VI optará, como veremos, por uma solução diferente, que privará o Pe. Antonelli da reforma litúrgica e deixará as mãos livres a Bugnini. No mesmo tempo, portanto, Antonelli deve sofrer a violenta reação de Bugnini, que ele acaba de descobrir, portanto, a par desta consulta que Paulo VI, pelo contrário, chamará "estritamente reservada" (p. 242).

 

O Pe. Antonelli começa a ver claro

Estamos no fim de 1967 e o Pe. Antonelli escreve na sua agenda: "Confusão. Ninguém possui mais o sentido sagrado e coercitivo da lei litúrgica... nos estudos em maior escala continua o trabalho de dessacralização, que se chama agora secularização; donde se vê que a questão litúrgica [...] se insere [...] num problema muito mais vasto e de fundo doutrinal; a grande crise, portanto, é a crise da doutrina tradicional e do magistério".

A venda começa a cair dos olhos do Pe. Antonelli; não se trata só de incompetência, duma espantosa superficialidade de trabalho "a toda a pressa"; trata-se dum fato muito mais grave: a reforma litúrgica é um instrumento nas mãos dos "inovadores" triunfantes (do mesmo modo que já tinha sido, em parte, o movimento litúrgico nas mãos dos "modernistas em declive").

A 23 de julho de 1968, o Pe. Antonelli revela ao cardeal Benelli as suas "preocupações sobre a reforma litúrgica que se torna sempre mais aberrante. Eu notava, em particular:

1. A lei litúrgica, que até o Concílio era uma coisa santa, não existe mais para muitos. Cada um se considera autorizado a fazer o que quer [...]

2. A Missa sobretudo, é o ponto crucial [...] agora começa a ação desagregadora em torno da confissão;

4. [...]

5. No "Consilium" há poucos Bispos que tenham uma preparação litúrgica, muitos poucos que sejam verdadeiramente teólogos [...]. E este é um lado perigoso. Na liturgia, cada palavra, cada gesto traduz uma idéia que é uma idéia teológica. Dado que atualmente toda a teologia está em discussão, as teorias correntes entre os teólogos avançados desmoronam sobre a fórmula e o rito: com esta gravíssima conseqüência que, enquanto a discussão teológica se mantém no nível elevado dos homens de cultura, uma vez descida na fórmula e no rito, ela toma caminho para a sua divulgação no povo" (p. 257, seg.).

 

Autodemolição da Igreja

Tudo isto é, com a conivência de Paulo VI, o malogro de toda a sã renovação litúrgica. A liturgia é sujeita à demolição doutrinal. O Pe. Antonelli dora em diante está consciente disto e testemunha o seu sofrimento. "O que, contudo, é triste [...], é um elemento profundo, uma atitude mental, uma posição preestabelecida, a saber, que muitos do que têm uma influência na reforma [...] e outros não têm nenhum amor, nenhuma veneração por aquilo que nos foi transmitido. Eles desprezam, logo de início, tudo o que existe atualmente. Uma mentalidade negativa, injusta e nociva. Infelizmente, mesmo o papa Paulo VI está um pouco deste lado. Todos eles terão as melhores intenções, mas com estas intenções, mas com esta mentalidade eles são levados a demolir e não a restaurar" (p. 258).

A 10 de fevereiro de 1969, a propósito do rito do Batismo, Antonelli escreve: "No fim do capítulo doutrinal, eu pergunto: como sucede que em todo o capítulo se fala do batismo para remissão dos pecados mas não se faz alusão ao pecado original?". E a 20 de fevereiro: "nesta manhã mesma tocou-me observar que até lá onde se esperava uma alusão clara ao pecado original, como numa pequena homilia de caráter catequético, parece que se evita falar dele. É esta nova mentalidade teológica que se degrada e não me agrada" (p. 224). Lembramos aqui que, precisamente com a negação do pecado original no célebre texto de São Paulo (Rm 5, 12-21), se tinha aberto o "novo curso" do Instituto Pontifício Bíblico, ou ainda o triunfo da exegese neomodernista, tenazmente combatida pelo saudoso Mons. Spadafora.

As observações do Pe. Antonelli são sempre mais graves e preocupantes. A propósito da discussão sobre os Proenotanda da Confirmação, ele escreve: "Eu me pergunto como se pode dar um parecer sobre estas questões das quais umas são muito graves, com um texto mudado no último momento e apresentado no decorrer da sessão? Não é uma coisa séria." E ainda: "Pessoalmente, eu me pergunto que autoridade e que preparação nós temos aqui para discutir questões muito mescladas de teologia?" (p. 246)

A questão do "Novus Ordo"

Em 1969, estoura a "questão do 'Ordo Missae'". O Pe. Antonelli fala a este respeito no seu Diário, mas também nas suas Notas pessoais sobre a reforma litúrgica. Sigamo-lo.

A 31 de outubro de 1969, ele anota na sua agenda: "Há alguns dias, o Pe. Sticker, salesiano, me diz que o cardeal Ottaviani tinha preparado uma crítica doutrinal do "Ordo Missae" e da "Instructio" anexa. Depois a notícia aparece nos jornais. Mons Laboa me disse que o Papa tinha escrito uma carta de 2 páginas ao cardeal Seper para este examinar a questão. O cardeal Seper, alarmado, tinha falado dela ao cardeal Gut, o qual - muito impressionado - falara da mesma ao Pe. Bugnini. Ontem de manhã, ele me disse que o cardeal Villot tinha escrito  há alguns dias  ao Pe. Bugnini para obstar a qualquer observação relativa ao "Ordo Missae". Mons. Laboa viu esta carta. Depois houve a publicação imprevista da "Instructio" [...] para matar no nascedouro a campanha da imprensa. A seguir, nessa tarde, 31 de outubro, o comunicado da C. E. I. (Conferência Episcopal Italiana, n.d..r), segundo a qual, a 30 de novembro, a versão italiana seria publicada e entraria em vigor na Itália; ao passo que a C.E.I tinha já dito que isto não seria possível. Estamos no reino da confusão. Eu lamento o fato, pois as suas conseqüências serão tristes" (p. 259).

O Pe. Antonelli, pessoalmente, é do parecer que não há "heresias", nem na Instructio nem no Ordo Missae, "mesmo se não se pode negar que as disposições da "Instructio" são confusas e que a sua própria formulação é tudo, menos clara e límpida" (p. 26). Em particular ― admite ele ― "a insistência sobre a idéia de refeição (ceia) que parece estar em detrimento da idéia de sacrifício", à qual se faz alusão "indireta, enquanto que a idéia de refeição volta freqüentemente e de modo direto... Ademais, certas omissões não serviram à clareza" (p. 260) e este foi também o caso da "formulação imprudente do no. 7" (p. 261). Mas, ainda uma vez, o Pe. Antonelli fica estupefato com a maneira de tratar da questão. A 31 de outubro de 1969, ele escreve: "Estou preocupado com a questão do Ordo Missae. Não compreendo por que se inquietam tanto com as críticas do cardeal Ottaviani e, em seguida, quando a imprensa começou a fazer barulho, quando se quis reagir com a publicação da "Instructio"... e o Comunicado da C. E. I com a ordem de pôr tudo em vigor para 30 de novembro, quando os textos não existem ainda e no-los prometem para 15 de novembro. Como se pode preparar uma transformação desta medida em 10 dias?" (p. 259)

Estamos, portanto, nas últimas réplicas. Já em 8 de maio de 1969, Paulo VI, com a Constituição Apostólica Sacrorum Rituum Congregatio dividiu a Sagrada Congregação para os ritos em duas: a Congregação para os Santos e a Congregação do Culto Divino. Bugnini foi nomeado Secretário da nova Congregação para o Culto Divino e Antonelli, secretário da Congregação para os Santos (p. 264). A última sessão do "Consilium" (9 de abril de 1970) coincide com a primeira sessão da nova Congregação do Culto Divino que ― precisa o cardeal Gut ― "é uma continuação do Consilium" (p. 244). Assim, o Pe. Antonelli sai ou talvez, mais exatamente, é excluído da cena da "reforma litúrgica".

 

Um julgamento do qual não podemos partilhar

O autor do livro que, não obstante, quer reivindicar o valor e a obra do "liturgista Antonelli" escreve: "É pena que Antonelli entre tão mal no trabalho da reforma, sobretudo após a supressão da sua Congregação dos Ritos. Portanto, ele permanece amargo. É talvez o destino dos pioneiros: eles abrem o caminho e outros vão adiante, deixando os pioneiros de lado" (p. 247).

Não. O Pe. Antonelli não é "amargo". Ele teria bom motivos para o ser, mas ele não o é: suas notas jamais têm o sabor dum ressentimento pessoal. Por exemplo, quando Paulo VI exclui o Prefeito da Congregação dos Ritos, o "conservador" cardeal Larraona, da "reforma litúrgica", confiando esta última ao "Consilium" presidido pelo cardeal "progressista" Lercaro, ladeado por Bugnini, somente o Pe. Antonelli parece preocupado ― e por justo motivo ― com a "diarquia" e os conflitos inevitáveis que surgirão entre dois organismos, ambos competentes na mesma matéria. Igualmente, quando Paulo VI o exclui também da "reforma litúrgica" preferindo-lhe Bugnini, o Pe. Antonelli se contenta com escrever: "Eu podia dizer muita coisa deste homem. Devo acrescentar que ele foi sempre apoiado por Paulo VI. Não me quereria enganar, mas a lacuna mais importante no Pe. Bugnini é a falta de formação e de sensibilidade teológicas. Tenho a impressão de que se concedeu muito, sobretudo em matéria de sacramentos, à mentalidade protestante. Não que seja o Pe. Bugnini que se tenha criado para si mesmo estas concessões. Absolutamente não foi ele que as criou. Ele se serviu de muitas pessoas e, não sei por que, introduziu neste "trabalho" pessoas hábeis, mas de colorações teológicas progressistas". E, muito generosamente, o Pe. Antonelli acrescenta: "E, ou ele não se deu conta dos fatos, ou então não resistiu, como se não se pudesse resistir [?], a certas tendências" (p. 264).

O julgamento do Pe. Antonelli sobre a "falta de formação e de sensibilidade teológicas" do Pe. Annibale Bugnini coincide, substancialmente com o seguinte julgamento, que, em termos jocosos, mas bem mais pesados, deixou sobre ele o abade D. Pietro Salvini O.S.B.: "No pequeno jornal da diocese de Pisa (no. 12, de 25/03/1973) li que o Bispo Bugnini... teria desejado substituir a homilia na Missa pela dança. Um hotentote desse gênero pode desejar isto e pior ainda" (Divagazioni di una lunga vita ― Divagações duma longa vida, ed. Stella del Mare, Livourne).

Quanto ao incrível "método de trabalho" dos autores da reforma litúrgica, basta reler o que escreve a respeito o prof. Romano Amerio, citando exemplos famosos da decadência da Cúria Romana e de seus organismos. (Iota Unum. Ed. Francesa, N.E.L., 1987), no. 74, p. 145: "a textos pontifícios que puderam gloriar-se durante séculos duma perfeição maravilhosa e duma irrepreensibilidade" corresponde hoje - observa ele - "um mau uso do latim" e uma "falta de rigor dos termos", "merecendo a Cúria ser inculpada pela falta de cultura subjacente em textos pontificais que se puderam gloriar durante séculos, duma perfeição maravilhosa e duma irrepreensibilidade."

Enfim, quanto às perplexidades manifestadas pelo Pe. Antonelli sobre Paulo VI e suas responsabilidades, bastará considerar que o Pe. Antonelli tem êxito em tomar à boa parte mesmo o discurso no qual o papa Montini diz aos membros do "Consilium" que a liturgia "é como uma árvore vigorosa que as suas raízes mantém no solo e sobre cujo tronco brotam novos ramos que cada ano se recobrem de novas folhas" (p. 200). O Pe. Antonelli se detém nestas "raízes" bem fixas no solo da Tradição e não colhe a novidade deste "tronco" "sobre o qual brotam novos ramos que se recobrem cada ano de novas folhas". Quando, então, isto teria acontecido na história bimilenar da liturgia? O cardeal Ottaviani havia vigorosamente sublinhado isto no Concílio, ao dizer: "Procuraremos suscitar o espanto, e até mesmo o escândalo, no povo cristão, introduzindo modificações num rito tão venerável, aprovado durante tantos séculos e que é agora tão familiar? Não convém tratar o rito da Santa Missa como se se tratasse dum pedaço de fazenda que se põe na moda, segundo a fantasia de cada geração". R. Wiltgen. (O Reno se lança no Tibre), 1976, p. 28.

Habituado, com Pio XII, a um trabalho sério e refletido, no respeito da tradição litúrgica, o Pe. Antonelli parece razoavelmente perplexo e depois, pouco a pouco, ele fica sempre mais preocupado com o andamento que a "reforma litúrgica" está a ponto de tomar: aqui, não se trata de "pioneiros" que "abrem o caminho e outros avançam", mas dum verdadeiro desvio da liturgia sujeita ao neomodernismo ― sob a etiqueta de "nova teologia" ― que, como bem compreendeu o Pe. Antonelli, "em regressão na fórmula e no rito, se dispõe a partir para a sua difusão no povo" (p. 257, cit).

Se se pode fazer uma censura ao Pe. Antonelli é de não ter sido "amargo", ao contrário, é de ter tido dificuldade em compreender, e talvez não ter compreendido plenamente a gravidade do que estava para acontecer. Mas é precisamente a sua confiança inicial e sua disponibilidade para uma renovação litúrgica sã que fazem dele uma testemunha preciosa contra a "feroz amputação litúrgica que se quis fazer passar por uma reforma" (G. Ceronetti, La Stampa, 18 de julho de 1990).

Martinus

Os primeiros choques - a questão da liberdade religiosa no Concílio

Agosto 12, 2018 escrito por admin

“Todos vêem que isso é completamente contrário à doutrina católica transmitida

até hoje, ensinada e promulgada pelos Pontífices Romanos”.

Cardeal Quiroga y Palacios

Já se passaram exatamente vinte anos desde que S. E. Monsenhor Lefebvre fez uma brilhante conferência sobre o novo código de direito canônico no teatro Carigmano de Turim. Nessa ocasião, tocou várias vezes na questão do falso “direito” à liberdade religiosa que o Vaticano II introduziu, assim como das relações entre a Igreja e o Estado. Durante a fase inicial de sua intervenção, Mons. Lefebvre mostrou dois opúsculos que levava consigo: tratava-se dos diferentes esquemas que se apresentaram, sobre esses assuntos, na fase preparatória do concílio: o esquema da Comissão Teológica, presidida pelo Cardeal Ottaviani, e o esquema do Secretariado para a Unidade dos Cristãos, tendo à frente o Cardeal Bea. 

Monsenhor Lefebvre afirmou aberta e profeticamente que a disputa entre essas duas posições, que na sala conciliar teve a vitória da segunda, constituía o início da grande batalha na Igreja entre católicos e “liberais”. Ilustraremos nesse artigo ambos os esquemas e os debates suscitados ao longo da fase preparatória do Concílio. Seguiremos as idéias da conferência de Mgr. Lefebvre, uma conferência na qual vibravam uma advertência e um apelo a não depor as armas num assunto de tanta importância para o reinado social de Jesus Cristo. Os próprios inimigos da Igreja reconhecem a importância da realeza social de Nosso Senhor; demonstram isso empregando todas suas forças para laicizar os Estados outrora católicos e impor o “dogma” da liberdade religiosa.

O estudo que se segue nos permitirá lembrar a doutrina católica que os Papas defenderam contra o liberalismo, “católico” ou não, a custa de lágrimas e sangue, e refutar ao mesmo tempo as doutrinas dos inovadores que, desgraçadamente, constituem hoje a forma mentis de quase todo o mundo católico, que tornou-se liberal mais ou menos conscientemente.

 

I. O esquema da comissão teológica: DE TOLERANTIA RELIGIOSA

O primeiro esquema, De relationibus inter Ecclesiam et Status necnon de tolerantia religiosa 1 é uma obra prima de síntese da doutrina católica sobre o assunto. Seu principal autor pode ser considerado o Cardeal Ottaviani, presidente da comissão apostólica, encarregado da redação dos esquemas preparatórios 2.

O esquema se inicia com a afirmação da existência de dois poderes: a sociedade civil e a Igreja, ambos necessários e supremos em sua ordem. A finalidade própria de cada uma da duas ordens constitui o fundamento da diferença entre ambas as sociedades. Tal distinção integra por sua vez a garantia de seu poder real e efetivo. Visto que entre o fim terreno, próprio da sociedade civil, e o fim espiritual, privativo da Igreja, há uma relação de subordinação do primeiro ao segundo (pois de nada valeria a felicidade temporal se não se alcançasse a eterna), concluímos que “o fim próprio da sociedade civil não pode nem deve ser perseguido excluso vel laeso fine ultimo: salute videlicet aeterna” [com exclusão em detrimento do fim último, isto é, da salvação eterna] 3.

Daí que a Igreja não intervenha nos assuntos puramente temporais. Mas o que interessa tanto ao âmbito natural quanto ao sobrenatural (como por exemplo, o matrimônio, a educação da juventude, etc.) o Estado deve tratá-lo de maneira que não fira, a juízo da Igreja, os bens superiores de ordem sobrenatural. A salvaguarda e a proteção de tais bens, mesmo sendo próprias da missão da Igreja, resultam muito vantajosas também para o Estado, porque favorecem a formação de bons cidadãos.

 

Os deveres religiosos do Estado

O parágrafo que trata dos deveres religiosos do poder civil pode ser considerado o mais importante de todos e, certamente, foi o alvo das críticas mais acerbadas por parte dos inovadores. Inicia-se com uma sentença lapidar: potestas civilis erga religionem indifferens esse nequit [o poder civil não pode ser indiferente à religião] 4.

De fato, o poder civil foi instituído por Deus para ajudar os homens a conseguir a perfeição humana, não somente mediante uma justa aquisição dos bens temporais e materiais, mas para favorecer, além disso, a circulação dos bens espirituais e o cumprimento dos deveres religiosos. Entre esses bens, nenhum é mais importante do que conhecer o Deus verdadeiro e cumprir os próprios deveres para com Ele. Isso é exigido pela própria ordem natural, expressão da sabedoria e vontade divinas; ignorar tal doutrina “afeta de modo particular o bem público e privado” 5.

Nesse ponto o esquema sustenta  uma afirmação de importância capital: “Não só os simples indivíduos hão de cumprir os deveres referidos para com Deus, mas também o poder civil, que representa a sociedade civil nos atos públicos, há de exercer a mesma obrigação em relação à Majestade Divina. De fato, Deus é o autor da sociedade civil e fonte de todos os bens que convergem a seus membros através dela mesma. Assim, pois, a sociedade civil deve honrar e venerar a Deus” 6. Deus, de fato, não criou os homens como indivíduos ilhados; ao contrário: quis que o homem fosse um animal social. Ao inscrever na natureza humana a característica da sociedade, instituiu também a potestatem civilem. “É inerente à natureza humana ser social e criado para ser regido por leis sociais, vivendo agregado a outros, muito mais do que se observa nos demais animais [...]. O homem [...] pode procurar recursos para ele próprio, mas não por si só, porque por si só, seria insuficiente para remediar todas as necessidades de sua vida. É natural, pois, que o homem viva em sociedade [...]. Sendo natural que o homem viva em sociedade, deve haver nela tudo quanto seja necessário para seu governo; porque se em uma sociedade ninguém se ocupasse mais do que de si próprio, logo ela se dissolveria, a não ser que houvesse um que a detivesse em sua perdição, consagrando-se ao regime e direção dos interesses comuns...” 7.

Ainda falta algo a ser dito sobre os deveres do poder político para com Deus: “o modo com que se deve honrar a Deus na presente economia não pode ser mais do que o que o próprio Deus  estabeleceu como obrigatório em relação à  verdadeira Igreja de Cristo” 8.

Assim, pois, o primeiro ponto sustentado pelo esquema é que Deus é o autor da sociedade civil e do poder político. Daí o poder que cabe ao próprio poder político de “dar a Deus o que é de Deus” (Lc 20, 25) 9. 

O segundo ponto diz respeito ao modo em que a sociedade civil há de honrar a Deus. De fato, Deus não deixou o homem sem guia nem freio: fundou só uma religião verdadeira e uma única e autêntica Igreja, a Católica, que não deixou nunca de assinalar os deveres da sociedade civil para com Deus. Por isso, está no esquema que “também o poder civil, assim como os cidadãos, tem o dever de reconhecer a revelação proposta pela Igreja” 10.

O terceiro ponto é o seguinte: Deus não se limitou a fundar a Igreja; além disso, manifestou ao mundo inteiro suas origens 11: “um juízo imparcial e prudente vê facilmente qual é a verdadeira religião. A verdade e o cumprimento das profecias, a freqüência dos milagres, a rápida propagação da fé apesar de  inimigos superiores e de barreiras humanamente insuperáveis, o testemunho sublime dos mártires e mil outras preclaras demonstrações tornam  patente que a única religião verdadeira é aquela que Jesus Cristo em pessoa instituiu, confiando-a a sua Igreja para que a mantivesse e a dilatasse em todo o universo” 12. Segue-se daí o dever, para o poder civil, de defender a plena liberdade da Igreja e não permitir que  ninguém a impeça de cumprir sua missão 13.

 

Aplicação aos Estados católicos e acatólicos

Uma vez explicados claramente os princípios doutrinais, o esquema infere as aplicações.

Nos Estados onde os cidadãos professam em sua maioria a religião católica, “o poder civil não goza de modo algum do direito de obrigar as consciências [dos católicos] para que aceitem a fé revelada por Deus” 14; disso não se infere, entretanto, que o Estado não tenha o direito de intervir “negativamente”, isto é, de impedir que se difundam religiões falsas e princípios contrários à religião católica: “para proteger os cidadãos da sedução do erro, para conservar o Estado na unidade da fé, sendo bem supremo e fonte de numerosos benefícios, inclusive temporais, o poder civil pode usar de sua autoridade para regular e moderar as manifestações públicas dos demais cultos e defender os cidadãos da difusão de doutrinas falsas que, a juízo da Igreja, põem em perigo sua salvação eterna” 15. Por isso, Monsenhor Lefebvre também afirmava: “naturalmente, o poder civil não pode obrigar ninguém a abraçar a religião católica (nem, com maior razão, outra religião, como diz o Código de Direito Canônico, can. 1351); mas pode, ao contrário, proibir ou moderar o exercício público das outras religiões” 16.

O estado pode, entretanto, promulgar, sob o olhar do bem da Igreja e do seu próprio, leis que se inspirem na tolerância de religiões falsas. Isso pode acontecer “para evitar males maiores, como o escândalo ou a discórdia civil, um obstáculo para a conversão à verdadeira fé...” 17. O Papa Pio XII abordou magistralmente esse tema em uma audiência concedida aos participantes do V Congresso Nacional da União de Juristas Católicos Italianos: “O dever de reprimir os desvios morais e religiosos não pode ser, portanto, uma norma última de ação. Deve estar subordinado a normas mais altas e mais gerais, que em determinadas circunstâncias permitem o erro, como sendo o melhor caminho para promover um bem maior.

Com isso, ficam claros os dois princípios dos quais deve-se deduzir, nos casos concretos, a resposta à gravíssima questão da conduta jurídica, do homem político e do Estado católico diante de uma fórmula de tolerância religiosa e moral sobre o que já foi citado antes [...]. Primeiro: o que não responde à verdade e à norma moral não tem objetivamente direito algum nem à existência nem à propaganda e nem à ação. Segundo: o fato de não impedi-lo por meio de leis estatais e de disposições coercitivas pode, entretanto, ser justificado pelo interesse de um bem superior e mais vasto” 18.

Quanto aos Estados católicos, o esquema lembra o dever que o Estado tem de, no mínimo, conformar-se com a lei natural; por fim, o Estado deve garantir a liberdade civil a todos aqueles cultos que não se oponham à religião nem à moral natural 19.

 

O direito-dever de anunciar o Evangelho

O esquema visto até aqui se inseria no esquema De Ecclesia. Pars  Secunda (cap. IX), e a ele se acrescentava o seguinte capítulo: De necessitate Ecclesiae annunciandi Evangelium omnibus gentibus et ubique terrarum (capítulo X) 20.

O dever da Igreja de evangelizar todos os povos deriva dos próprios poderes de Cristo, que ordenou: “ide, pois, ensinai a todos os povos, batizando-os em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a observar tudo quanto eu ordenei” (Mt. 28, 19-20). Por isso “a Igreja goza em todas as partes, independentemente de qualquer poder humano, do direito inalienável de enviar núncios do evangelho,de estabelecer comunidades cristãs, de  incorporar-se aos homens mediante o batismo e exercer sobre seus súditos tanto poder quanto o de reger e santificar 21.

O Estado Católico não só não deve impedir este direito-dever da Igreja Católica, mas deve facilitá-lo; por outro lado, o poder civil de um Estado acatólico deve abster-se  pelo menos de proibi-lo, e há de reconhecer que a doutrina católica não contém nada que discorde da religião natural, nada contrário à dignidade humana e que não redunde em vantagem nem da vida individual nem da social. Tampouco é lícito a poder algum opor-se à pregação do Evangelho para defender suas tradições, visto que a obra evangelizadora da Igreja conservará e elevará tudo o que há de bom e de justo nelas.

A Igreja, por sua vez, não pode renunciar a sua missão por motivo nenhum, e resistirá até ao martírio, se for necessário: “por esse motivo, o santo sínodo proclama solenemente, ante todo o universo, o direito que a Igreja possui de anunciar o Evangelho a todos os homens e no mundo inteiro e fornecer-lhes os meios de salvação, e insiste com aqueles que estão constituídos em autoridade sobre os povos para que não estorvem a plena liberdade da Igreja no cumprimento desse dever, sendo melhor favorecer o exercício desta entre os povos que lhes confiou a providência divina"22.

 

II- O CONFRONTO

Oposições ao esquema da Comissão Teológica

A primeira oposição relevante foi a de S. Em. o Cardeal Frings. Ele afirmou que a revelação divina tem por destinatários os indivíduos e não a comunidade civil. Portanto, ainda sustentando firmemente que existe uma verdade religiosa, deve-se deixar as pessoas em liberdade para seguirem a religião que julguem ser verdadeira. A intervenção do Estado só se justifica quando a opção religiosa causa lesão ao bem público 23. Ao Cardeal Frings fez eco o Cardeal Léger: também para este último o Estado deve abster-se completamente de favorecer a verdadeira religião menosprezando assim as falsas 24, visto que tal escolha pertence à consciência de cada um dos indivíduos. 

Os dois príncipes da Igreja esqueciam, entretanto, que tal posição fora condenada por Pio IX de maneira circunstanciada: “Sabeis perfeitamente, veneráveis irmãos, que há homens na atualidade que, aplicando ao Estado o ímpio e absurdo princípio do chamado naturalismo, têm a ousadia de ensinar que “o caráter (a representação) mais perfeito do estado e o progresso civil exigem imperativamente que a sociedade humana se constitua e governe sem consideração alguma da religião, e como se ela não existisse, ou pelo menos, sem fazer diferença alguma entre a verdadeira religião e as religiões falsas”. E contradizendo a doutrina da Sagrada Escritura, da Igreja e dos Santos Padres, não temem afirmar que “o melhor governo é aquele no qual  não se reconhece a obrigação do poder político de reprimir com sanções penais os profanadores da religião católica, a não ser quando a tranqüilidade pública o exija” 25.

S. Em. o Cardeal Doephner acrescentou outros “motivos” 26. Depois de ter afirmado que nem todos os teólogos católicos concordam com o fato de que o poder civil tem o dever de honrar a Deus com o culto público, acolher a fé católica e limitar a liberdade de cultos (mas então duvidamos de que se tratem de teólogos católicos), o Cardeal Doephner declara: “Parece claramente inoportuno que o Concílio enuncie o direito das nações católicas de negarem a liberdade de culto público às religiões acatólicas. Isso ofenderia muito aos não-católicos[?!] e atrapalharia a colaboração dos católicos com os não-católicos para realizarem o bem comum...27. Por isso o Cardeal desprezava o esquema proposto pela Comissão Teológica. De fato, “devemos ter sempre presente o fato de que não podemos esperar, nos Estados onde a maioria dos cidadãos á acatólica, que nos tratem de maneira diferente à que nós tratamos os acatólicos nos Estados onde a maioria é católica. Portanto, o próprio bem da igreja universal parece exigir que nos abstenhamos de reprimir as demais religiões” 28.

Observemos, antes de tudo que a intervenção do Cardeal Doephner não apresenta nem sombra de distinção entre a religião verdadeira e as falsas. Em segundo lugar, notemos que o dever da sociedade civil de render culto a Deus, ele o considerava uma “uma opinião teológica discutível”, ainda que o magistério, sustentando-se na revelação e no direito natural, tivesse se pronunciado a respeito várias vezes com toda clareza: “A liberdade de cultos no Estado [reivindicada também por ‘católicos liberais’] pede que este não atribua nenhum culto público a Deus, por não haver razão que o justifique; que nenhum culto seja preferido aos outros; e que todos eles tenham igual direito, sem respeito algum ao povo, caso seja ele declaradamente católico. Para que tudo isso fosse correto, teria de ser verdade que a sociedade civil não tem nenhuma obrigação para com Deus ou que pode infringi-las impunemente. Mas a primeira asserção não é menos falsa do que a segunda. Não se pode duvidar, de fato, que a sociedade estabelecida entre os homens, existe por vontade de Deus, seja considerada em suas partes, em sua forma, que é a autoridade, em sua causa, seja na grande lista de utilidades que fornece [...]. Logo, a sociedade há de reconhecer Deus como pai e autor e reverenciar e adorar seu poder e seu domínio. Esconde, pois, a justiça, e esconde também a razão, seja o Estado ateu ou um que venha parar em ateísmo, que se aja de igual modo quanto às religiões, e conceda a todas promiscuamente iguais direitos. Sendo, pois, necessário ao Estado professar uma religião, há de professar a única verdadeira, que se conhece sem dificuldade, singularmente nos povos católicos, visto que nela aparecem como que selados os caracteres da verdade 29.

Assim, pois, o Cardeal Ottaviani tinha razão de sobra quando disse, contra as objeções alegadas na fase preparatória do Concílio, que o ponto chave consistia em compreender se a sociedade civil deve honrar a Deus, colere Deum 30, ou não; o que significa também que era preciso decidir se todas as declarações do magistério sobre esse assunto deviam ser seguidas ou ignoradas.

 

A defesa do Magistério constante da Igreja

Deixemos o próprio Cardeal Ottaviani responder, num tom profundamente ardente, ao Cardeal Doephner e seus demais “companheiros de infortúnio”: “Já disse ― e não quiseram escutar ou então não o entenderam ― que no Estado regido por um regime democrático e em que os católicos são a maioria [...] os próprios católicos podem exigir que o estado aja segundo os princípios dos cidadãos. No Estado em que há várias religiões [...] a Igreja se posiciona pela paridade dos cultos, e no Estado em que há uma enorme maioria de não-católicos [...] disse que [os católicos] devem ser tolerantes, como pedia Tertuliano quando os católicos eram poucos 31. Foi assim que o Cardeal Ottaviani enunciou de maneira realista o modo com que se devem esboçar as relações Igreja-Estado com base nas diferentes situações em que os católicos se encontrem, sem reconhecer entretanto o direito à liberdade religiosa, o que teria sido contrário ao ensinamento da Igreja; um ensinamento que Pio XII repetiu até as vésperas do Concílio: “antes de tudo é preciso afirmar claramente que nenhuma autoridade humana, nenhum Estado, nenhuma Comunidade de Estados, seja qual for seu caráter religioso, pode dar um mandato positivo ou uma autorização positiva de ensinar ou de fazer o que for contrário à verdade religiosa ou ao bem moral. Um mandato ou uma autorização deste gênero não teria caráter obrigatório e ficaria sem valor. Nenhuma autoridade poderia conferi-la, porque é contra a natureza obrigar o espírito e a vontade do homem ao erro e ao mal, ou considerar um e outro como indiferentes. Nem sequer Deus poderia dar um mandato positivo ou uma autorização positiva de tal caráter, porque estaria em contradição com sua absoluta veracidade e santidade 32.

O Cardeal Ottaviani afirma, ademais, com vigor: “falou-se da [má] impressão que teriam  os protestantes, os pagãos, etc.; mas devemos manter nossa posição, tendo em vista o que diriam os católicos na Itália, na Espanha, em Portugal, na Irlanda, na Hispano-América[...], e me dirijo particularmente aos bispos da América Espanhola: sabem que batalha os protestantes empreenderam nessas zonas contra a unidade da religião. Vamos dar, então, aos protestantes, conduzidos pelo Vaticano II, uma arma para atacar o catolicismo ou para opor contrapeso ao que fazem as autoridades civis ― e fazem muito ― em favor do catolicismo? [...]. Assim, não se pode dizer com segurança, como fez um bispo, ‘salva reverentia erga Magisterium ecclesiasticum’ [salva a reverência devida ao Magistério eclesiástico]. O magistério ensina o que está exposto [no esquema], e é por isso que não cabe afirmar: ‘sejamos reverentes’, e logo em seguida agir contra ele 33.

O Cardeal Alfrink percebeu a diferença entre a doutrina tradicional, representada pelo esquema da Comissão Teológica, e a “liberal”, exposta no esquema do Secretariado para a Unidade dos Cristãos: “só o mero fato de que se fale de tolerância religiosa no primeiro esquema e não de liberdade religiosa, como no outro,  já nos causará problemas...34. Mas o Cardeal Alfrink, mesmo reconhecendo em tal diferença de termos uma diferença de doutrina, confirma a posição “liberal”, porque do primeiro esquema “os católicos inferirão que a Igreja Católica, enquanto goze de maioria em seus países, privará os cidadãos acatólicos da liberdade civil de professar sua religião e irá tolerá-los como um mal35. Ao falar dessa maneira, o cardeal exibe uma incompreensão absoluta tanto dos fundamentos da doutrina católica quanto do direito natural. De fato, desde quando o erro pode reivindicar direitos? Desde quando o árbitro pessoal pode reivindicar direitos absolutos? Isso acontece só no âmbito da reflexão filosófica moderna, que se inspira no pensamento liberal-maçônico, sempre condenado pela Igreja. Perguntemo-nos então: que devem fazer os cardeais no concílio: ensinar a verdade perene que Deus lhes confiou ou fazer propaganda dos delírios daqueles que reivindicam para o homem direitos absolutos que só competem a Ele? Não se ouve aqui o eco da tentação original: eritis sicut Deus [sereis como Deus]? 

S. Em. o Cardeal Larraona alertou todos contra qualquer concessão em matéria doutrinal para “favorecer” os acatólicos: “se cremos que a conversão há de se realizar mais facilmente pelo fato de que nos acerquemos deles de maneira que já não subsista diferença alguma, nos equivocamos completamente [...]; crer que devemos ceder na doutrina (como já cederam muitos, oh dor!) ― nessa doutrina que por desgraça, já não se reverencia publicamente na Europa, ― ou que devemos ceder também na disciplina, constitui, a meu juízo, um erro que tem de ser rechaçado... 36. O Cardeal Browne sustentou que o esquema da Comissão Teológica era impecável e classificou de “infantilismo” a suposição de que a doutrina exposta admiravelmente na Immortale Dei de Leão XIII fosse uma doutrina contingente e mutável 37. 

Tudo o que já foi exposto revela claramente a existência de uma fissura no seio das próprias comissões preparatórias, uma fratura que sairia definitivamente a flor da pele na sala conciliar. De um lado, encontramos os que só queriam re-elaborar e expor fielmente a doutrina católica de sempre, procurando dar diretrizes práticas de ação pastoral, e de outro, configurava-se cada vez mais a vontade de recorrer à pastoral para inserir uma modificação substancial na concepção católica das relações entre Igreja e Estado. A nova orientação deletéria, que desgraçadamente acabou prevalecendo, manifesta-se com clareza no esquema do Secretariado para a Unidade dos Cristãos, presidido pelo Cardeal Bea.

 

III – AS “NOVIDADES” DO ESQUEMA DO SECRETARIADO PARA A UNIDADE DOS CRISTÃOS   DE LIBERTATE RELIGIOSA

O magistério “repensado”

O primeiro dado desconcertante que aparece a primeira vista no esquema em questão é a ausência de uma lista de notas que remeta o leitor aos textos do magistério, enquanto que no esquema da Comissão Teológica, ao contrário, há uma lista que ocupa páginas e mais páginas. 

E é o próprio Cardeal Bea quem nos diz que peso deve-se atribuir ao esquema De libertate religiosa. O presidente do Secretariado para a Unidade dos Cristãos declarou, na apresentação do esquema citado 38, que foi escrito tendo presente a situação de então, caracterizada, por um lado, pelas acusações de intolerância que os católicos vertiam contra a Igreja Católica (sic!), e, por outro lado, pelo fato de que já não existia nenhuma nação que se pudesse considerar católica (afirmação que provocou a reação do Cardeal Larraona 39); entretanto e isso é o que nos interessa o Secretariado “quis expressar-se também em termos teológicos” (de principiis theologics cogitavit 40), ou seja, quis repensar a posição católica apresentada ininterruptamente pelo magistério de todos aqueles Papas que tiveram de enfrentar as idéias liberais. As novidades de tal “repensamento” são de importância capital.

 

As “time bombs” (as bombas-relógio)

O esquema confirma, antes de tudo, que a Igreja deve ocupar-se não somente das verdades que devem ser cridas, mas, além disso, deve ocupar-se das pessoas que hão de aderir a tais verdades, precisamente de “todos aqueles movidos pelo Espírito Santo por caminhos diversos a fim de que ascendam livremente à casa do Pai comum41. 

Já encontramos nessa afirmação dois elementos abundantemente desenvolvidos no pós-concílio (essas novidades “escondidas” nos textos, que constituem os avanços e os pretextos em que se possa apoiar as doutrinas heterodoxas para desenvolvê-las amplamente em tempos mais oportunos, são chamadas com toda razão de time bombs nos ambientes anglo-saxões, isto é, são bombas conscientemente programadas para explodir no seu devido tempo).

Descobrimos in primis a idéia segundo a qual o Espírito Santo se serve positivamente de caminhos distintos aos estabelecidos por Nosso Senhor Jesus Cristo na Igreja Católica (viis diversis a Spiritu Sancto moventur), uns caminhos que a reflexão pós-conciliar identificará explicitamente com as religiões falsas. Isso foi previsto com olhos de lince por S. Em. o Cardeal Quiroga y Palacios, que pediu que se esclarecesse que, se o Espírito Santo move de fato, também aqueles que andam por outros caminhos fora da Igreja Católica, “não os move para que andem por tais caminhos, mas apesar de andarem por eles, isto é, a despeito de que discorram por tais caminhos. Por isso não poderá inferir-se nada daqui em favor da liberdade religiosa, mas somente em favor da tolerância42. O Cardeal havia explicado no mesmo sentido a parábola do grão e da cizânia, alegada tortuosamente no esquema do Secretariado como suposta testemunha evangélica em favor do direito à falsa “liberdade religiosa”. De fato, o Senhor Jesus diz explicitamente que foi o inimigo quem semeou a cizânia, enquanto aquele que devia velar se encontrava dormindo. Portanto, não é reconhecido direito algum ao inimigo semeador, porque atuou às escondidas e com dolo. Enfim, essa parábola sugere a tolerância e nega todo direito ao erro 43.

Em segundo lugar, no esquema do Cardeal Bea, se insinua que a liberdade é, em sua essência, ausência de constrição interna, o que exige que ninguém limite a expressão da interioridade do sujeito. O único limite consiste, segundo ele, em não por obstáculo à liberdade dos outros. Também aqui se opôs o Cardeal Quiroga y Palacios, pois ainda que seja verdade que cada um tenha o direito de formar livremente sua consciência e de tomar suas decisões a partir dela, não é verdade que o status mentis errantis (a consciência errônea) possa reivindicar direitos sociais para si ou lamentar-se das intervenções da autoridade legítima a fim de evitar danos ao bem da Igreja e da sociedade 44.

  

O ponto chave                           

Com toda razão é reconhecido a todas as pessoas, no esquema, o direito de seguir sua consciência, mesmo quando esta erra (“em matéria religiosa, deve-se respeitar o direito de seguir sua própria consciência, tanto para os crentes [...] como para todos os homens e todas as sociedades humanas, sem restrição45). Mas o Secretariado para a Unidade dos Cristãos extrai daí conseqüências errôneas, especialmente para a livre expressão da religião que a consciência julga verdadeira. Este ponto é de uma importância extrema. Sem pretender abusar da paciência do leitor, parece-nos necessário seguir passo a passo o modo como São Tomás trata esse assunto: “Visto que o objeto da vontade é o que a razão lhe propõe, se ela lhe apresenta algo mal, a vontade se torna má ao procurá-lo. Isso não se verifica somente nas coisas indiferentes, mas também nas boas ou más por natureza. De fato, não só a coisa indiferente pode assumir acidentalmente natureza de bem ou de mal, mas também o próprio bem pode assumir aspecto de mal, e o mal, aspecto de bem, em virtude da apreciação da razão. Abster-se da fornicação, por exemplo, é um bem. Contudo, a vontade só pode mover-se em direção a ele como sendo um bem,  baseada na apresentação da razão. Assim, se a razão erra e apresenta [a abstinência da fornicação] como um mal à vontade, esta tenderá a ele sob o aspecto de mal e, por conseguinte, será má, pois quererá um mal (não um mal que seja tal por si mesmo, mas um mal que é tal acidentalmente, em virtude da apresentação da razão). E assim, crer em Cristo é algo essencialmente bom e necessário para a salvação. Mas a vontade não pode tender a isso se não estiver baseada na apresentação da razão. Logo, se a razão apresenta isso como um mal, a vontade, forçosamente, o quererá como um mal. Não porque seja um mal em si, mas porque seria um mal na consideração da razão. Daí que é necessário concluir que, falando em termos absolutos, toda volição que se afaste da razão, certa ou errada, é sempre pecaminosa46. Segue-se que ninguém deve forçar uma pessoa a crer em Jesus Cristo: “A doutrina católica e a Igreja sempre se pronunciaram, e continuam fazendo-o hoje, a favor da mais ampla liberdade de consciência na busca da verdade revelada e em sua aceitação integral mediante o ato de fé. O princípio que enunciou outrora Santo Agostinho a esse respeito, segundo o qual o homem não pode acercar-se da fé religiosa nonnisi volens, foi sempre a norma a que se adequou constantemente a práxis da Igreja em relação aos infiéis; igualmente se conforma com ela  a postura que mantém quanto aos dissidentes, nascidos e crescidos no seio de confissões religiosas que desertaram há tempos da unidade querida por Cristo 47.

Com o princípio da não constrição, especialmente no âmbito religioso, deriva a obrigação que a vontade tem de seguir a consciência: “a aceitação da verdade há de ser espontânea: a força ou a constrição podem produzir um conformismo externo, mas nunca a adesão espiritual a uma doutrina [...]. Segue-se então que quem erra, especialmente se o faz de boa fé, tem direito a não sofrer violência externa ou pressão moral para fazê-lo mudar de opinião ou profissão religiosa [...]. Direito de liberdade interior, que exclui categoricamente o exercício de qualquer tirania sobre as consciências, tanto no campo político quanto no religioso. Mas trata-se de um direito não do erro, mas da pessoa humana em sua dignidade de ser racional na qual caminha com firmeza48. Sobre tal dignidade de ser racional, funda-se o princípio da tolerância religiosa, sempre defendida pela doutrina católica. Mas a Igreja jamais considerou tal dignidade como absoluta, isto é, solta, desligada de todo limite extrínseco e intrínseco. Pelo contrário, sempre ensinou que o direito à liberdade do ser racional está intrinsecamente limitado pela lei moral e a justiça, e que se acha extrinsecamente circunscrito pelas exigências da vida social (onde se choca com o direito dos outros). Daí que a consciência errônea, ainda que obrigue a vontade, não pode ufanar-se de possuir direito algum, pois o direito se liga ontologicamente somente à verdade e ao bem objetivamente determinados e por conseguinte, à consciência verdadeira, isto é, conforme a verdade objetiva: “gostaríamos de perguntar aos sustentadores dos direitos da consciência subjetiva o que responderiam a um amigo que chegasse em sua casa e lhes convidasse a abandoná-la porque tem certeza subjetiva que esta casa lhe pertence. Não têm dúvida de que o entregariam à polícia, se não fossem ao manicômio diretamente. Como se explica tal comportamento se a consciência subjetiva [a consciência errônea inclusive] goza do direito de fazer-se valer? Explica-se perfeitamente pela natureza das relações sociais, as quais têm fundamento no direito objetivo, perante o qual há de bater em retirada qualquer persuasão pessoal49.  

Tampouco a vontade que segue os ditados da consciência errônea se exime sempre de pecado: “Se a razão ou a consciência são errôneas por causa de um erro direta ou indiretamente voluntário quanto a assuntos que todos estão obrigados a saber, tal erro não exime de pecado a vontade que segue a razão ou a consciência errôneas. Mas se, pelo contrário, trata-se de um erro[...] em que não haja negligência por parte do sujeito,  que ignora apenas as circunstâncias particulares, então tal erro da razão ou da consciência exime a vontade de pecado 50.

Tiremos agora as conseqüências de nossa análise: “sendo uma faculdade moral, o direito só pode germinar sobre o terreno da verdade e do bem [...]. Ora, estando a consciência subjetiva no erro, ainda que o professe de boa fé [isto é, mesmo no caso em que a consciência apresente tal erro como se fosse um bem, ainda que na realidade seja um mal], não pode engendrar por si própria direito algum. Portanto, o direito acompanha unicamente a consciência objetiva, ou seja, a consciência que se conforma com a verdade objetiva na aceitação da religião 51.

Os desvios doutrinais do cardeal Bea não acabam por aqui. Mais na frente, o esquema afirma que a Igreja jamais admitiu e não pode admitir a doutrina do indiferentismo religioso. Entretanto, enaltece as sociedades civis modernas que dispensem tal modo de agir a todas as religiões 52. Bea sustentou igualmente, na tese que defendeu, que o Estado deverá ocupar-se  somente do bonum communem humanum, o único que o Estado pode reconhecer à luz da razão (o Cardeal Bea já exclui então, por princípio e contra o Vaticano I, que se possa reconhecer a origem divina da religião católica através de prova externas, acessíveis à razão humana!), e que de pouco servirá multiplicar citações de outros tempos, porque o Concílio, segundo a vontade de João XXIII, devia ter o olhar posto sobre o aggiornamiento.

 

O hiato

É evidente o hiato existente entre o esquema e a doutrina tradicional: “a doutrina antiga [...] tem seus fundamentos nas premissas reveladas: que a religião verdadeira não pode ser mais que uma e é exclusivamente a católica, em cujo favor convergem todas as provas históricas e dogmáticas. A estas premissas, se acrescenta logo um princípio de ordem racional, ou seja, que o direito só se vincula ontologicamente à verdade. E visto que a religião católica é a única verdadeira, deduz-se que urge o dever do Estado, particularmente se a maioria de sua população é católica, de proteger a religião revelada com todos os meios que estão ao seu alcance [...]. Segue-se que [...] não se pode sustentar a  tese do laicismo do Estado e sua separação da Igreja [...] sem antes virar de cabeça para baixo este sólido baluarte chamado dogma 53. A isso se acrescenta que “não somente o bem comum obriga o Estado a sair da neutralidade proposta, mas também há a obrigação indeclinável, sobretudo como Estado, de render culto público ao Deus verdadeiro na única forma que este estabeleceu através da revelação” 54. Exatamente o mesmo que sustentava o Cardeal Ottaviani e todo o ensinamento do magistério infalível!

Portanto, podem-se perceber vários erros graves na posição de Bea:

1) Negação do direito natural, segundo o qual também a sociedade civil deve render o  culto devido a Deus, pois O tem como autor.

2) Negação da Redenção, que exprime qual é o único culto verdadeiro e agradável a Deus.

3) Negação do conceito filosófico da verdade, entendida como adequação do intelecto com a realidade, conhecido universal e objetivamente.

4) Negação do conceito verdadeiro de liberdade humana, “limitada intrinsecamente pela lei moral e a justiça, e circunscrita extrinsecamente pelas exigências da vida social” 55.

Assim, pois, o Cardeal Quiroga y Palacios falou com razão sobre o esquema apresentado por Bea: Nemo non videt omnia haec esse omnino contraria doctrinae usque adhuc tradiate ab omnibus et a Summis Pontificibus expositae et propugnata [Não há ninguém que não veja que tudo isso é contrário à doutrina católica transmitida até hoje por todos e exposta e propugnada pelos Sumos Pontífices] 56.

 

Conclusões

Começamos esse artigo ponderando a clarividência da Monsenhor Lefebvre. Agora será mais fácil apreciá-la.

Pensando bem, todo o debate relativo aos dois esquemas propostos gira em torno de um ponto decisivo: é absoluta a dignidade humana e a liberdade que se deve a tão preciosa dignidade? Ou é Deus o Absoluto? (A existência de dois absolutos, de fato, é impossível por ser contraditória e o que não é possível, não pode ser real). A pergunta pode parecer banal e fácil de responder, mas não é assim. O castelo elaborado pelo Cardeal Bea e seus colaboradores só se mantém em pé se a indivisível conexão do direito com a verdade for negada. A liberdade humana deve adaptar-se às exigências dessa conexão, pois ela procede de uma ordem objetiva de valores cujo fim último é a vontade do ordenador e legislador supremo. Assim, pois, a liberdade não é em nada ofendida ao se negar que a consciência subjetiva tenha direitos; no máximo, “manifesta-se uma oposição irredutível a um conceito errôneo de liberdade, entendida como faculdade de fazer tudo que dê vontade: um conceito com o qual nenhuma doutrina moral jamais  poderá chegar a compromisso algum” 57

A negação do vínculo da liberdade com a verdade leva à liquidação do Absoluto divino, fonte da ordem da verdade, fora do qual todo o resto só pode ser relativo, não no sentido de um meio sobre o fim, mas no sentido de um fim secundário (o homem) sobre o fim último (Deus). Esta é a tentação original: eritis sicut Deus, sereis como Deus. É a loucura do anticristo, que “se ergue acima de tudo o que se chama Deus ou é objeto de veneração até o ponto de sentar-se ele próprio no templo de Deus, proclamando-se Deus a si mesmo” (2Ts 2, 4). É a luta das duas cidades: a cidade de Deus, que O ama até o desprezo de si, e a do homem, que ama a si próprio até o ponto de menosprezar Deus.

Dom Marcel Lefebvre tinha razão: os primeiros choques da batalha apocalíptica no seio da igreja se produziram a propósito da liberdade religiosa. O próprio Paulo VI disse, de uma  maneira desconcertante, em um incrível discurso pronunciado na ONU, precisamente ao acabar o Concílio, que o Concílio Vaticano II era o primeiro baluarte conquistado pelos que, sabendo ou não, preparam a sopa de Satanás, seu anticristo e sua cidade: “O humanismo leigo e profano apareceu, finalmente, em sua terrível estatura e, de um certo modo, desafiou o Concílio. A religião do Deus que se fez homem encontrou-se com a religião – porque assim é – do homem que se faz Deus. O que aconteceu? Um choque, uma luta, uma condenação? Poderia ter acontecido, mas não aconteceu... Vós, humanistas modernos, que renunciais à transcendência das coisas supremas, reconhecei pelo menos este mérito [ao Concílio] e reconhecei  nosso novo humanismo. Também nós ― e mais do que ninguém ― somos promotores do homem 58.

São João, ao contrário, diz o seguinte: “Eles são do mundo: por isso dizem coisas do mundo e o mundo os escuta. Nós somos de Deus. Quem não é de Deus não nos ouve. Por isso distinguimos o espírito de verdade do espírito de erro” (1 Jo 4, 5-6). Escutemos, pois, o Espírito da verdade!

Aloysius

 

(Jornal "Sim Sim Não Não", no. 143)

  1. 1. Acta et Documenta Concilio Oecumenico Vaticano II Apparando. Series II Praeparatoria II. 4; pp 657 ss
  2. 2. O cardeal havia terminado há pouco tempo uma obra em dois volumes sobre o direito público da Igreja.
  3. 3. Acta et Documenta... cit., p. 658.
  4. 4. Ibidem
  5. 5. Leo PP. XIII, Litterae encyclicae Libertas de libertate humana, 20 de junho de 1888.
  6. 6. Acta et Documenta... cit., p. 658
  7. 7. Santo Tomás de Aquino, De regimine principum, I, 1
  8. 8. Acta et Documenta... cit., Pp. 658-659
  9. 9. Precisamente essa passagem evangélica será muito mal entendida pelos liberais, que a utilizarão para sustentar (erroneamente, como é claro) a separação entre Igreja e Estado.
  10. 10. Ibidem, p. 659
  11. 11. Cf. Ibidem
  12. 12. Leo PP. XIII, Epistola encyclica Immortale Dei de civitatum constitutione christiana, 1 de novembro de 1885.
  13. 13. Cf. Acta et Documenta... cit., p. 659
  14. 14. Ibidem, p. 660.
  15. 15. Ibidem
  16. 16. M. Lefebvre, Accuso el Concilio (Acuso ao Concílio) Editorial Ichthys: Albano Laziale, 2002, p.78, nota 5.
  17. 17. Acta et Documenta ...cit,. p.600
  18. 18. Pius PP. XII,Nazione e comunitá internazionale nella allocuzione ai Giuristi Cattolici Italiani (Nação e Comunidade internacional no discurso aos juristas católicos italianos), 6 de dezenbro de 1953, em Discorsi e Radiomessagi di Sua Santitá Pio XII (Discursos e Radiomenssagens de Sal Santidade Pio XII), tipogrtafia Poliglota Vaticana, 1954, vol. XV, pp. 488-489.
  19. 19. Acta et Documenta... cit., p. 600
  20. 20. Cf. Acta et Documenta... cit., pp. 672 ss.
  21. 21. Ibidem, pp. 672-673.
  22. 22. Ibidem, p.  673.
  23. 23. Cf. Acta et Documenta ..., cit, pp. 692-693.
  24. 24. Ibidem, pp 695-701.
  25. 25. Pius PP. IX, Cuanta cura, 8 de dezembro de 1864.
  26. 26. Cf. Acta et Documenta ...cit., pp. 701-706.
  27. 27. Ibidem, p. 705.
  28. 28. Ibidem.
  29. 29. Leo PP. XIII, Litterae encyclicae Libertas de libertate humana , 20 de junho de 1888.
  30. 30. Cf. Acta et Documenta ... cit., pp. 719-721.
  31. 31. Ibidem, p. 720.
  32. 32. Pius PP. XII, Nazione e comunitá internazionale..., 6 de dezembro de 1953, em Discorsi e Radiomessage di Sua Santitá Pio XII cit., p. 487.
  33. 33. Acta et Documenta... cit., p. 721
  34. 34. Ibidem, p. 707.
  35. 35. Ibidem.
  36. 36. Ibidem, p. 710
  37. 37. Cf. Ibidem, pp. 710-712.
  38. 38. Cf. Acta et Documenta..., pp. 688-691.
  39. 39. Cf. Ibidem, p. 710.
  40. 40. Ibidem, p. 689.
  41. 41. Ibidem, p. 677.
  42. 42. Ibidem, p. 727.
  43. 43. Ibidem.
  44. 44. Ibidem.
  45. 45. Ibidem, p. 678
  46. 46. Summa Theologicae, I-II, q. XIX, a.5.
  47. 47. A. Messineo, S. I., La libera ricerca della verità (a Livre busca da verdade), “La Civiltà Cattolica”, IV (1950), p. 57.
  48. 48. A. Messineo, S. I., Soggettivismo e liberta religiosa (Subjetivismo e liberdade religiosa), “La Civiltà Cattolica”, III (1951), p. 16.
  49. 49. A. Messineo, S. I., La coscienza soggetiva e la vita sociale (A cosnciência subjetiva e a vida social), “La Ciiltà Cattolica”, II (1950), p. 510.
  50. 50. Summa Theologicae, I-II, q. XIX, a. 6.
  51. 51. A. Messineo, S. I., Soggettivismo e libertà religiosa  cit., p. 5.
  52. 52. Cf. Acta et Documenta... cit., pp. 680-681.
  53. 53. Cf. Ibidem, pp. 689-690.
  54. 54. A. Messineo, S. I., Democrazia e laicismo dello Stato (Democracia e laicismo do Estado), “La Civiltà Cattolica”, II (1951), p. 588.
  55. 55. Ibidem, p.589.
  56. 56. A. Messineo, S. I., Soggetivismo e liberta religiosa cit., p.15.
  57. 57. Acta et Documenta cit., p. 728. Intervenção de S. Em. o Cardeal Quiroga e Palácios.
  58. 58. A. Messineo, S. I., Soggetivismoe liberta religiosa cit., p.15. I Documenti Del Concilio Vaticano II (Os documentos do concílio Vaticano II), Edit. Gregoriana, Pádua, 1967, pp. 1155-1156.

Ecumenismo e "liberdade religiosa"

Agosto 11, 2018 escrito por admin

O fato

O teólogo da Casa Pontifícia, Georges Cottier, disse em uma entrevista a Avvenire (19 de janeiro de 2002) que por trás da rejeição da reforma litúrgica de Paulo VI «se esconde muito mais: a rejeição do Concílio, do ecumenismo, do principio da liberdade religiosa». Não seremos nós quem lhe contradirá; antes, ao contrário, confessamos que identificou muito bem os dois pontos em que se centra a resistência ao Concílio: ecumenismo e “liberdade religiosa”. Acrescentemos que estes dois pontos poderiam reduzir-se a um só, dado que o novo e falso conceito de “liberdade religiosa” se elaborou com vistas ao ecumenismo. Em todo o caso, ecumenismo e “liberdade religiosa” constituem os dois maiores pontos de ruptura com a doutrina tradicional da Igreja, e não seria difícil demonstrar que com eles se conecta qualquer outra “novidade” que vá contra o “antigo” presente nos textos do Concílio, assim como tampouco seria difícil provar que qualquer “novidade” que vá contra a doutrina da Igreja constitui uma corrupção inaceitável dela.

 

Desenvolvimentos e corrupções doutrinais

O Vaticano I declara:

«E, com efeito, a doutrina da fé que Deus revelou não foi proposta como um achado filosófico que deva ser aperfeiçoado pelo engenho humano, mas sim entregue à Esposa de Cristo como um depósito divino, para ser fielmente guardada e infalivelmente declarada» (Denzinger nº 1800). Por isso não se dá nunca nada substancial e absolutamente novo na doutrina da Igreja. O “novo” que aparece nela em virtude do desenvolvimento ou explicitação doutrinal não passa de uma novidade acidental e relativa. Assim, por exemplo, quando a Igreja fazia rezar pelos fiéis defuntos, já ensinava implicitamente o dogma do purgatório; e, quando desta prática litúrgica se inferiu o dogma do purgatório, deu-se a passagem do ensinamento implícito ao explícito, mas não houve nenhuma “novidade” em sentido próprio. Diga-se o mesmo do primado, implícito na prática do recurso a Roma, ou do dogma da Imaculada Conceição, implícito na maternidade divina de Maria, etc.

A Igreja, com efeito, exerce seu magistério de vários modos:

— de maneira explícita (mediante documentos do magistério, teólogos “aprovados”, catequese, pregação etc.);

— de maneira implícita (mediante a prática, particularmente a litúrgica, e as leis disciplinares).

— de maneira tácita, por fim, mediante os documentos ou “monumentos” da tradição 1, nos quais o magistério da Igreja tomou corpo, por assim dizer, no curso dos séculos: livros litúrgicos, normas disciplinares, instituições, ordens religiosas, igrejas e monumentos, devoções, práticas de caridade, obras de zelo ou de piedade, vida dos Santos canonizados, civilização, costumes, língua e arte dos povos cristãos 2, etc.

Pode suceder que, por diversas circunstâncias (heresias, ofuscamento de uma verdade ensinada só implícita ou tacitamente, etc.), se dê a passagem do magistério implícito ao explícito, ou se faça necessário o retorno ao ensinamento explícito de uma verdade que a Igreja se havia limitado a propor tacitamente por um tempo 3.

Um exemplo do retorno do magistério tácito ao explícito se deu, por exemplo, em relação à Tradição, quando a Igreja definiu a noção exata daquela no Concílio de Trento, contra os protestantes, noção que se havia limitado a propor tacitamente no período escolástico.

Assim, pois, toda a explicitação da doutrina não é mais que «uma maneira de afirmar com mais clareza, com mais precisão, com mais certeza, com mais insistência as verdades reveladas que sempre se creram, ao menos implicitamente» 4. Razão por que, apesar do desenvolvimento doutrinal de vinte séculos, Pio XII podia escrever que a Igreja «cumpre o mandato que tem de conservar sempre puras e íntegras as verdades reveladas, e as transmite sem contaminações, sem acréscimos, sem diminuições» 5. Todo o “novo” que seja irredutível ao “antigo” não é um desenvolvimento, mas uma corrupção da doutrina católica.

  

As “novidades” do Vaticano II

Com o Vaticano II houve uma irrupção de algo “novo” na Igreja. E isto é já de per si uma novidade sem correspondência na história do progresso doutrinal, sempre lento, gradual, ponderado. Trata-se de algo “novo” que, a partir do Concílio e em nome deste, se infiltrou em todas as maneiras em que se expressa o magistério ordinário:

— modo explícito: “novas” doutrinas, “novas” catequeses, “novas” interpretações ou “releituras” dos Padres da Igreja e até da Escritura Sagrada;

— modo implícito: “nova”, ou melhor, “novas” liturgias, “nova” disciplina (se é que a podemos chamar assim), “novas” práticas, e a verdadeira Igreja de Jesus Cristo considerada do mesmo modo que as seitas heréticas e/ou cismáticas, que o hebraísmo e que as religiões falsas;

— modo tácito: a todos os documentos do magistério precedente se desconsidera na medida do possível, destruindo-os ou sepultando-os no esquecimento, enquanto uma “doutrina” nova de alto a baixo vai tomando corpo e fazendo-se sensível ante nossos olhos em “monumentos” inteiramente novos.

Diante de tamanha irrupção de “novidades”, aos católicos lhes cabe o dever perante Deus, e por conseguinte o direito irrenunciável perante os homens, de perguntar-se se estas “novidades” são desenvolvimentos ou corrupções doutrinais, «se a Igreja de hoje — para dizê-lo com o Cardeal Ratzinger — é realmente a de ontem, ou se a mudaram por outra sem fazê-lo saber» 6.

 

O contraste com o “antigo”: índice de corrupção doutrinal

Em tais circunstâncias, os católicos não estão desprovidos em absoluto de um critério objetivo para poder distinguir o desenvolvimento legítimo das corrupções doutrinais.

O critério, acessível a todos, ensinam-no os Padres da Igreja, a unanimidade dos teólogos realmente católicos (quer dizer, que “conhecem as regras da fé” e as respeitam), a prática e o próprio magistério da Igreja.

São Vicente de Lérins escreve em seu Commonitorium (século V), ideado precisamente para encontrar «uma regra certa» que permitisse aos católicos distinguir a verdade do erro em tempos em que «a astúcia dos novos hereges exige uma vigilância e uma atenção cada vez maiores»«Mas se objetará: Não se dará, segundo isso, progresso algum da Religião na Igreja de Cristo? Dê-se em boa hora, e grande. Quem haverá tão mesquinho para com os homens e tão aborrecível a Deus que trate de impedi-lo? Mas de tal maneira, que seja verdadeiro progresso da fé, não uma alteração dela. A saber, é próprio do progresso que cada coisa se amplifique em si mesma; e o próprio da alteração é que algo passe de ser uma coisa a ser outra» (XXIII, 1-3). Depois, comentando a exortação de São Paulo a Timóteo (I Tim 6, 20: «Ó Timóteo, guarda o depósito, evitando as profanas novidades de palavras»), São Vicente de Lérins explica: «Profanas novidades de palavras. De palavras, a saber: as novidades de dogmas, de matérias, de sentenças que são contrárias à antigüidade e ao passado...».(XXIV, 3-4) 7.  

Aí está, pois, a regra: se no âmbito da Igreja desponta algo “novo” contrário ao antigo não é uma verdade tirada de seu tesouro, mas a cizânia do erro semeada pelo inimicus homo (Mt 13, 24-3O) 8. Não cabe dúvida quanto a tal coisa. «Ao antigo é que há que ater-se: se a novidade é profana, a antigüidade é sagrada»; é a novidade a que deve cessar «de fazer recair suspeitas sobre a antigüidade e de formular acusações contra ela»; é a novidade a que há de deixar de «molestar e perseguir a antigüidade», enquanto a fé antiga não deve cessar «de opor-se à novidade com todas as suas forças» 9.  

Entre os teólogos realmente católicos nos apraz citar aqui o Cardeal Newman, porque os modernistas tergiversam com respeito a ele injustamente.

Entre os critérios que pormenoriza para distinguir um desenvolvimento legítimo da corrupção doutrinal, o Cardeal Newman põe «a tendência dos desenvolvimentos posteriores em conservar a doutrina possuída precedentemente»; assim, pois, quando o “novo” tenda, em contrapartida, a excluir o “antigo”, estamos sem dúvida ante uma corrupção doutrinal 10. Trata-se, em essência, do cânon leriniano.

No mesmo critério aparece inspirada a prática da Igreja nos Concílios dogmáticos consagrados a distinguir a verdade católica da heresia.

Já determinou o segundo Concílio de Nicéia (787), ao condenar o conciliábulo dos iconoclastas (Constantinopla, 753), que a coerência doutrinal com a tradição constitui uma das condições da ecumenicidade de um Concílio: «Como poderia ser por sua vez o Sétimo [Concílio] aquele que não concorda com os seis santos Concílios ecumênicos que lhe precederam? [...] Seria como se alinhássemos seis moedas de ouro e lhes acrescentássemos depois um vintém: não se poderia chamar sétima à última, e isso em razão da diversidade de sua matéria...» 11.

«Como poderia [...] pretender ser o Sétimo o que não segue os seis Concílios que lhe precederam?... Vós, que haveis violado as tradições daqueles seis [Concílios precedentes], como haveis podido chamar sétimo ao vosso?»: assim o santo abade Estêvão havia reprovado aos iconoclastas, 25 anos antes, sua ruptura com a tradição, razão por que o mataram a pauladas 12.

Por último, o magistério infalível da Igreja fez sua a regra leriniana no Vaticano I, repetindo-a ao pé da letra na Constitutio de fide catholica, sessão III: «Cresça, pois, e muito e poderosamente se adiante em quilates, a inteligência, ciência e sabedoria de todos e de cada um, ora de cada homem particular, ora de toda a Igreja universal, das idades e dos séculos, mas somente em seu próprio gênero, quer dizer, no mesmo dogma, no mesmo sentido, na mesma sentença» (Denzinger nn.1800 e 1818).

 

Ecumenismo e “liberdade religiosa”: não progresso, mas corrupção doutrinal

Quando se iniciou o Vaticano II, a Igreja gozava da posse secular e indiscutida de doutrinas explícitas relativas:

— à verdadeira Igreja de Jesus Cristo e, por conseguinte, à posição das seitas heréticas e/ou cismáticas, do hebraísmo e das religiões falsas;

— às relações Igreja/Estado e, em particular, à noção exata de “liberdade religiosa” e à tolerância dos cultos falsos 13.

Ademais, a Igreja gozava, na abertura do Vaticano II, de uma liturgia, expressão íntegra e inequívoca de fé católica.

A estes três campos (eclesiologia, relações Igreja/Estado, liturgia) invadiu-os o que de “novo” trazia o Concílio. Por desgraça, era algo “novo” contrário, ou melhor, em pugna com o antigo. Com efeito, se a Igreja ensina, como ensinou sempre até o Vaticano II, que a Igreja de Cristo é uma só, que fora dela não há salvação e que, portanto, as demais supostas “Igrejas” não são igrejas, mas seitas, «igrejas ilegítimas» (São Irineu), «sarmentos secos» (Santo Agostinho), e que os indivíduos particulares, se padecem de ignorância invencível, podem salvar-se só em virtude da pertença in voto à Igreja verdadeira, de modo algum desta doutrina constante pode inferir-se hoje, com o Vaticano II, que «as igrejas e comunidades separadas [...] de nenhuma maneira estão desprovidas de sentido e valor no mistério da salvação. Porque o Espírito de Cristo não recusa servir-se delas como meios de salvação» 14. Não pode inferir-se tal coisa porque a doutrina “nova” exclui a antiga abertamente e ofende as verdades reveladas que se contêm nela a título de conseqüências. Com efeito, a doutrina nova descobre que são legítimas as “igrejas ilegítimas”, que a seiva da graça divina corre pelos “sarmentos secos” e, em conseqüência, que a Igreja de Cristo já não é única nem constitui «a arca única de salvação» (Denzinger n. 1647). Depois, no pós-Concílio, em nome do decreto conciliar Nostra Aetate, se promoveu também as religiões não-cristãs à categoria de caminhos de salvação, pelo menos «extraordinários».

Mais ainda: se a Igreja ensina, como o fez sempre até o Vaticano II, que Nosso Senhor Jesus Cristo tem direito, por ser Deus, de reinar não só sobre os indivíduos mas também sobre as sociedades, e que, por conseguinte, só a Igreja Católica goza do direito natural e divino à assistência negativa e positiva do Estado, na qual se compreende outrossim o dever de impedir o culto público das religiões falsas, a não ser que motivos de prudência política aconselhem sua tolerância, desta doutrina constante da Igreja não pode deduzir-se de maneira alguma, com o Vaticano II, que exista um “direito” da pessoa humana de que não se lhe impeça a profissão pública e associada de sua crença falsa ou até irreligiosa 15, nem que o mesmo “direito” caiba às seitas e às religiões falsas 16. Não se pode deduzir isso porque a doutrina “nova” exclui a antiga e não deixa imune a verdade revelada que esta compreende a título de conseqüência. Com efeito, no dizer da doutrina “nova”, a Igreja católica já não é a única igreja instituída por Deus e, por conseguinte, cessa o direito unicamente da Igreja católica à assistência do Estado, cessa o dever do Estado de impedir o culto público das religiões falsas e lho substitui pela obrigação de favorecê-las sem discriminação; e já nem há meio de falar em “tolerância”. Em suma, Nosso Senhor Jesus Cristo já não goza do direito de reinar sobre as sociedades; seus próprios ministros o destronaram.

O anterior pode bastar para provar que as “novidades” do Concílio não são progressos, mas corrupções doutrinais, e o confirma irrefutavelmente tudo o que a hierarquia vem fazendo no pós-Concílio em nome daquele, mas contrariamente à tradição católica: a primeira e segunda “reuniões de oração” de Assis, junto com as outras iniciativas ecumênicas, sempre vedadas pela Igreja; a liquidação dos Estados católicos que restavam, incluída a Itália, em razão das “novas” concordatas; a supressão das duas estrofes relativas à realeza social de Nosso Senhor Jesus Cristo no hino das primeiras e segundas vésperas de Cristo Rei etc. etc. Para quê continuar a enumeração? Basta pensar que o Cardeal Ratzinger chegou a declarar “perimée” 17, quer dizer superada, defunta, a doutrina católica sobre as relações Igreja/Estado (como se uma doutrina constante da Igreja pudesse negar-se sem negar também a infalibilidade desta).

Quanto à nova liturgia, de maneira alguma se pode considerar legítimo um Novus Ordo, do qual a posteridade deduzirá (fazendo uso do princípio acima mencionado segundo o qual “a lei da oração estabelece a lei da fé”) que a Igreja professou na última etapa do século XX uma fé mais protestante do que católica no tocante ao Santo Sacrifício da Missa.

Sim, o “teólogo da Casa Pontifícia” acertou em cheio: a resistência católica não luta tão-somente contra o rito de Paulo VI (que nasceu igualmente por motivos ecumênicos), mas também contra “o Concílio, o ecumenismo, a liberdade religiosa”, contra todo o “novo” que se quer acreditar como “desenvolvimento doutrinal”, segundo parece, ao passo que constitui uma corrupção evidente da doutrina à que a consciência católica está vinculada sub gravi.

Hirpinus

(Revista Sim Sim Não Não, no. 112)

  1. 1. Dictionnaire de Théologie Catholique, verbete Eglise, col. 2194.
  2. 2. V. J. M. Vacant, Le Magistère de l'Eglise et ses organes.
  3. 3. Franzelin, De Divina Traditione, tese XXIII.
  4. 4. Pio XII, Munificentissimus Deus.
  5. 5. Il Sabato, 30 de julho-5 de agosto de 1988.
  6. 6. Commonitorium, n. 1, 2, 23, 24.
  7. 7. Franzelin, De Divina Traditione, tese XXIV.
  8. 8. Commonitorium, n. 32.
  9. 9. H. Newman, Essay on the Development of Christiam Doctrine.
  10. 10. V. Peri, I Concili e le Chiese (Os Concílios e as igrejas), Roma, 1965, pp. 24-25; texto grego em Mansi, t. XIII.
  11. 11. Ibid., p. 33, n. 25.
  12. 12. V. Dictionnaire de théologie catholique, verbete Igreja, col. 2212 ss.
  13. 13. Les principes de la Théologie catholique, ed. Téqui, Paris, p. 427.
  14. 14. Unitatis Redintegratio, 3.
  15. 15. Dignitatis Humanae, n. 2.
  16. 16. Ibid., n. 4.
  17. 17. Vide Rapporto sulla Fede (Informe sobre a fé), p. 211.

Idéias claras sobre as canonizações

Agosto 11, 2018 escrito por admin

Apesar de já termos mostrado com dois textos que as dúvidas que pairam sobre a integridade das canonizações feitas ultimamente são baseadas em questões objetivas, teológicas, e não em simples opinião nossa, algumas pessoas continuam a insinuar que essas dúvidas seriam por termos um espírito cismático. Para fortalecer ainda mais o fundamento teológico da nossa posição, respondendo às calúnias injuriosas, trazemos este trabalho publicado no jornal italiano SiSiNoNo, em sua versão brasileira, SimSimNãoNão, de março de 2003

 

IDÉIAS CLARAS SOBRE AS CANONIZAÇÕES

 

Um leitor nos escreve:

«Rvdo. Diretor:

Confesso que me acho perplexo, não só diante algumas beatificações, mas também com relação a uma canonização recente. Comumente se dá por certa a infalibilidade do Papa ao canonizar santos, mas, após efetuar uma investigação por minha conta, constatei que essa questão está muito longe de se achar definida...»

Assim é, com efeito. Ainda não há uma definição da Igreja a respeito disso, nem se pode falar de uma tradição constante sobre o assunto em questão.

Desde que a Santa Sé reservou para si as causas de canonização, os teólogos e canonistas discutiram, durante mais de nove séculos, sobre a infalibilidade do Papa ao declarar santa uma pessoa, dividindo-se em “infalibilistas” e antiinfalibilistas”. Apesar disso, começou a impor-se a tese infalibilista a partir de 1800, a tal ponto que hoje constitui uma “sentença comum” entre os teólogos 1. Mas que quer dizer isso? E que atitude deve tomar um católico diante de uma “sentença comum”?

 

“Sentença comum, mas ainda não fundada satisfatoriamente

«A sentença comum é uma doutrina pertencente, de si, ao âmbito das opiniões livres, mas sustentada comumente pelos teólogos» 2.

Quanto à atitude que se deve adotar com relação à ela, seria temerário quem se opusesse, «sem fundamento, à sentença dos demais em matéria teológica» 3, quer dizer, quem «se afastar sem motivo da doutrina comum» 4; mas, se se der tal “motivo”, tal “fundamento”, isto é, se houver razões fundadas para afastar-se da sentença comum, ninguém estaria obrigado a “fazer coro com os demais”.

No tocante à infalibilidade nas canonizações (todos convêm que não se dá a infalibilidade nas beatificações), alguns teólogos, mesmo sem se afastar da sentença comum, reconhecem que «a dificuldade do problema está em achar uma prova verdadeiramente satisfatória dessa infalibilidade cuja existência se afirma» 5. Assim se exprime o teólogo alemão Scheid. E Bartmann, que o cita, observa por sua vez que a tese “infalibilista”, mais que em «argumentos particulares e peremptórios», se funda em um «‘feixe de argumentos’, como se o número devesse suprir, de certo modo, a debilidade de cada argumento tomado separadamente» 6.

Tal debilidade dos argumentos “infalibilistas” foi há pouco posta em evidência por um estudo do dominicano Daniele Ols, professor no Angelicum e “relator” da Congregação das Causas dos Santos. O estudo em questão versa sobre os fundamentos teológicos do culto aos santos. Limitar-nos-emos aqui a resumir a parte atinente a nosso tema.

 

“Fato dogmático”?

Dois aspectos na canonização devem ser levados em conta:

1) A afirmação do princípio geral segundo o qual quem pratica as virtudes cristãs em grau heróico vai para o paraíso.

2) A aplicação desse princípio geral a um indivíduo concreto, particular.

Ora, ainda que é fácil demonstrar que o princípio geral está contido na revelação divina, «é evidente, apesar disso, que o fato de que Tício ou Caio viveram santamente não se contém nela, nem de maneira explícita nem implicitamente» (pág. 34). Daí vem que os teólogos digam, comumente, que as canonizações pertencem ao domínio dos “fatos dogmáticos”, ou seja, daqueles fatos não revelados de si mesmo, mas relacionados estreitamente «com uma doutrina que deve ser afirmada ou uma heresia que é mister condenar» (pág. 33). Assim se explica por que, «em geral, quem examina o problema se detém aqui e conclui asseverando que a Igreja pode canonizar infalivelmente» (pág. 34). Mas, no caso da canonização, dá-se realmente uma conexão necessária e estreita entre a proclamação da santidade de uma pessoa e a doutrina sobre a glória dos santos?

É evidente que a Igreja é infalível na condenação não só das heresias, mas também dos hereges individualmente considerados, assim como dos escritos heréticos, porque é rigorosamente necessário para sua missão «não só condenar erros em abstrato (freqüentemente pouco compreensíveis para muitos), mas mostrar também os fautores desses erros e os escritos que os propagam, de maneira que os fiéis possam manter-se longe deles» (págs. 33 e s.). O caso da canonização, no entanto – observa o autor do estudo - , «não é exatamente igual ao da condenação de um herege. No caso da condenação, está claro que nos achamos diante de um grave perigo para a fé dos cristãos e que a identificação precisa de tal perigo é necessária para a preservação da dita fé. Ao contrário, quando se trata da canonização, não temos nada disso. [...]. Não se seguiria um dano mortal para a fé em caso de erro, ainda que, salta aos olhos, seria algo muito desagradável. Em outras palavras, se os fiéis seguissem a Lutero, seria de mortal gravidade, mas se, por acaso, venerassem um santo que estivesse de fato no inferno, isso careceria de tal gravidade; e a dita veneração poderia aproveitar à sua vida cristã como se a rendessem a um santo autêntico, porque essa veneração teria por objeto a pessoa em questão unicamente enquanto considerada santa, amiga de Deus» (pág. 33).

O autor aduz, em confirmação do que disse, o caso dos «santos duvidosos ou até inexistentes», cuja devoção não acarreta nenhum dano, nem à doutrina católica, nem à fé dos devotos que os veneram, «por causa de suas (presumidas) virtudes cristãs, sinal de sua (também presumida) união com Deus». Tampouco os pedidos «formulados por meio da intercessão desses pseudo-santos» são forçosamente ineficazes, já que, ao ser a confiança na intercessão dos santos uma forma de confiança em Deus, «compreende-se que Deus ouça favoravelmente uns pedidos que, por falta de intermediário, vão a Ele diretamente» (pág. 35; citação do bolandista 7 Delehaye). Daí a conclusão: «Por isso, como a canonização de tal ou qual pessoa não é necessária para a guarda e defesa do depósito da fé, não parece que a matéria da canonização seja tal, que esteja sujeita à infalibilidade» (ibi).

 

Uma semelhança só aparente

Demonstrada a debilidade do argumento principal dos “infalibilistas”, o autor passa a examinar «a fórmula da canonização solene», que «se considera geralmente como a prova de que o Papa pretende empenhar sua infalibilidade na canonização».

Apesar do fato de que falta nas canonizações “eqüipolentes” 8 (o qual traz algumas dificuldades aos “infalibilistas”), a fórmula das canonizações solenes só em aparência é idêntica às fórmulas dogmáticas, por exemplo, às usadas por Pio IX e Pio XII para definir, respectivamente, o dogma da Imaculada Conceição e o da Assunção da Santíssima Virgem. Idêntica nada mais que em aparência porque, segundo observa o autor, «estas últimas fórmulas dizem explicitamente que uma determinada doutrina deve ser crida (ou que constitui um dogma revelado por Deus, que vem a ser o mesmo). A fórmula da canonização é mais vaga, posto que se limita a definir (o qual significa “determinar”), não que se deve crer que fulano de tal é santo, mas só que fulano de tal é santo». Tampouco a fórmula da canonização diz «que tipo de assentimento o fiel deve prestar  à definição», enquanto que nas fórmulas dogmáticas está claro que as doutrinas definidas devem ser cridas por serem reveladas por Deus e, por isso, com fé divina.

Para comodidade de nossos leitores, transladamos aqui as fórmulas usadas por Pio IX e Pio XII, e depois as que costumam ser empregadas nas canonizações.

«Declaramos, pronunciamos e definimos que a doutrina que defende que a Beatíssima Virgem Maria [...] foi [...] preservada imune de toda mancha de culpa original foi revelada por Deus e, por conseguinte, deve ser crida firme e constantemente por todos os fiéis (esse a Deo revelatam atque idcirco ab omnibus fidelibus firmiter constanterque credendam, lê-se na bula dogmática Ineffabilis Deus, de Pio IX; «pronunciamos, declaramos e definimos ser dogma divinamente revelado (divinitus revelatum dogmam esse) que a Imaculada Mãe de Deus, a sempre Virgem Maria [...] foi assunta em corpo e alma à glória celeste. Por isso, se alguém [...] ousar voluntariamente negar ou pôr  em dúvida o que por Nós foi definido, saiba que desertou totalmente da fé divina e católica», lê-se na bula dogmática Munificentissimus Deus, de Pio XII.

Muito mais vagas e genéricas são as fórmulas das bulas ou, para nos expressarmos com mais propriedade, das cartas decretais de canonização: Sanctum esse decernimus et definimus (canonização de São José Kalinowski: 17 de novembro de 1991); Sanctos et sanctam esse decernimus et definimus (canonização de São Pio V, Santo André Avelino, São Félix de Cantalice e Santa Catarina de Bolonha: 22 de maio de 1712). Salta aos olhos a diversidade sublinhada pelo autor.

 

A carência de anátema e uma evolução significativa

A diversidade substancial que medeia, apesar de algumas semelhanças aparentes, entre as bulas dogmáticas e as canonizatórias se confirma por carecer estas últimas do anátema com que se encerram as bulas dogmáticas, assim como pela evolução sofrida na cláusula tradicional das bulas de canonização.

A primeira bula de canonização conhecida9 é também a única em que figura um anátema. Mas, naquela época (ano de 993), o “anátema”, como se adverte no decreto de Graciano, não sancionava um delito contra a fé, mas correspondia a uma forma mais grave de excomunhão por um delito de desobediência, «pelo que estaria absolutamente fora de lugar tratar de inferir, da existência daquele [único] anátema, a existência de uma definição dogmática».

Não só já não figura o anátema nas seguintes bulas de canonização, mas tampouco se faz censura ou ameaça alguma de sanção até Gregório XI (1371). Aparece com este Papa uma cláusula que, a partir de Pio II (canonização de Santa Catarina de Sena: 1461), se usou em todas as bulas de canonização até João XXIII, «com amplificações que não mudavam sua substância»; daí que constituísse a cláusula tradicional, por assim dizer. Ameaçava-se nela com «a indignação de Deus onipotente e dos Santos Apóstolos S. Pedro e S. Paulo» a quem ousasse contraire (“ficar contra”) a bula papal. Depois, a dita cláusula (presente ainda nas duas primeiras bulas de canonização do Papa Roncalli) deu lugar a fórmulas cada vez mais brandas, que se limitavam a recordar as penas previstas pelo direito para os desobedientes 10, até desaparecer de todo nas canonizações do próprio João XXIII e nas de Paulo VI 11 e João Paulo II 12.

Esse desaparecimento confirma que a cláusula tradicional sublinhava a autoridade do Papa, mas não sua intenção de comprometê-la no grau em que é infalível: quer dizer, advertia «sobre as penas divinas e humanas em que incorreria quem desobedecesse», razão pela qual «se podia suprimi-la sem mudar nada da substancia das coisas, porque é sabido, ainda que se não mencione, que quem desobedece ao Papa se expõe à indignação divina e às penas previstas pelo direito».

Deve notar-se, com efeito, que, diferentemente das bulas dogmáticas, na cláusula tradicional das bulas de canonização «não se ameaça com a indignação divina aquele que não crer na verdade da canonização, mas aquele que for contra [em latim: contra-ire], quer dizer, aquele que manifestar externamente seu dissentimento. Os anátemas das definições dogmáticas, ao contrário, condenam antes de tudo os que não crêem na verdade definida, e somente depois os ameaça com censuras se expressarem publicamente sua dissensão» (págs. 41-42).

Eis aqui, a modo de exemplo, a cláusula da proclamação do dogma da Imaculada Conceição: «Pelo que, se alguém presumir sentir no coração [corde sentire] contrariamente àquilo por Nós definido, o qual Deus não permita, conheça e saiba com certeza que está condenado por seu próprio juízo, que naufragou na fé e se apartou da unidade da Igreja, e que ademais, por seu próprio ato, fica submetido às penas estabelecidas no direito se o que sente no coração, atrever-se a manifestá-lo em palavras ou por escrito ou de qualquer outra maneira» (Ineffabilis Deus).

Compare-se agora a cláusula anterior com a cláusula tradicional nas bulas de canonização: «Que a ninguém seja lícito violar o que Nós quisemos e determinamos neste texto ou ficar contra o mesmo com audácia temerária. Se alguém ousar tentá-lo, saiba que incorrerá na indignação de Deus onipotente e dos Santos Apóstolos S. Pedro e S. Paulo» (Nulli ergo hominum liceat hanc paginam nostrae voluntatis et constitutionis infringere vel ei ausu temerario contraire. Si quis autem hoc attentare praesumpserit indignationem omnipotentis Dei et beati Petri et Pauli Apostolorum eius se noverit incursurum).

Como se vê, falta, nas bulas de canonização, a primeira parte da condenação: aquela na qual se incorre por “sentir no coração contrariamente...”, ou, falando como os teólogos, por negar o internum mentis assensum (a adesão interna da mente); subsiste somente a segunda censura, a que é reservada a quem atuar contra a bula no foro externo, quer dizer, a quem não observar o que os teólogos chamam o silentium obsequiosum (o silêncio ditado pelo respeito), que não permite àquele que dissente em seu coração, contradizer publicamente a autoridade (salvo se se dá “um perigo de escândalo para a fé”, como veremos).

Para concluir e para tirar toda possível dúvida de que a cláusula tradicional das canonizações não prova a intenção do Papa de empenhar sua infalibilidade, sobressai-se o fato indiscutível de que a dita cláusula «não é própria das bulas de canonização, mas faz parte do esquema normal de qualquer bula, inclusive do esquema das que carecem de todo alcance doutrinal». Assim, por exemplo, Clemente VIII a usa tanto na bula de canonização de Raimundo de Peñafort, quanto na bula Ea Romani Pontificis, que estabelece a jurisdição, os privilégios, etc., dos auditores da Câmara Apostólica. Daí que «não se pode inferir» que «haja definições infalíveis nas bulas de canonização porque se ameace nelas com a indignação divina, visto que também são objeto da mesma ameaça os que não respeitam as tarifas estabelecidas para os notários, etc.» (pág. 41).

 

A “definitio” e o testemunho de Bento XIV

Por outra parte, o termo “definitio” figura nas bulas de canonização pelo mero fato de que «se emprega a palavra ‘definimus’ no corpo do documento», ainda que seja para denotar uma “determinação”, uma “decisão” do Romano Pontífice, não sua intenção de pronunciar-se infalivelmente, como nas bulas dogmáticas. Sobre isto temos o testemunho acreditado e decisivo de Bento XIV, que, ainda que se inclinava pessoalmente para a infalibilidade do Papa nas canonizações, contudo, afirma ser lícito sustentar a tese oposta, a “antiinfalibilista”, o qual ele não poderia afirmar se a cláusula tradicional de canonização - usada por ele também na única canonização de seu pontificado - manifestasse a intenção papal de pronunciar uma sentença infalível, como queriam os “infalibilistas”.

 

“Certum est” e “pie credendum est”

O autor se detém também na posição de Santo Tomás, «a quem às vezes se quis contar no número dos infalibilistas, mas que propõe, na realidade, uma solução de senso comum, fundada na convicção segundo a qual o Espírito Santo assiste a Igreja, sem que se requeira, no caso específico das canonizações, que a dita assistência garanta a infalibilidade» (pág. 45).

Interrogado sobre o assunto, Santo Tomás responde, com efeito:

1) É certo que é impossível que a Igreja erre quando julga em matéria de fé (certum est quod iudicium ecclesiae universalis errare in his quae ad fidem pertinent impossibile est).

2) Ao contrário, é possível que a Igreja erre ao julgar fatos particulares, por causa de testemunhas falsas (possibile est iudicium ecclesiae errare propter falsos testes).

3) A canonização dos santos se acha «a meio caminho» entre os dois casos precedentes [medium est inter haec duo]; não obstante, dado que a honra tributada aos santos é uma profissão de fé na glória destes, deve-se crer piamente [pie credendum est] que tampouco nestes casos pode errar o juízo da Igreja (Quodlibet 9, a. 16).

O autor sublinha as diferentes fórmulas empregadas por Santo Tomás: em matéria de fé, “é certo” que é impossível” que a Igreja possa errar: certum est quod [...] errare [...] impossibile est; no tocante às canonizações, ao contrário, Santo Tomás diz que “se deve crer piamente” que tampouco nelas pode errar a Igreja: pie credendum est quod nec etiam in his [...] errare possit. Ora, a expressão pie credendum est, assim como a análoga pie creditur (“há razões para crer piedosamente”), são usadas por Santo Tomás cada vez que «nem existe nem pode existir um ensinamento infalível da Igreja sobre algo, por carecer de base na Revelação (ou porque não se trata de realidades necessárias para a salvação), o que não impede que se dêem motivos, mais ou menos decisivos, para pensar que as coisas sejam de uma maneira determinada». Os ditos motivos nos são dados pelo «conhecimento geral que a Revelação nos dá acerca da maneira de agir habitual de Deus». Donde se depreende que o pie credendum est usado para a canonização significa que, «não tendo a canonização um fundamento preciso na Revelação, nem podendo tê-lo, não pode ser considerada como ato garantido pela infalibilidade, mas como um ato que a fé que temos na assistência geral do Espírito Santo à Igreja nos convida a considerar como isento de erro» (pág. 48).

 

Conclusão do autor

Essa parte do estudo relativa à infalibilidade nas canonizações se conclui com a sentença de Bento XIV, que distingue duas questões cuidadosamente.

1) É de fé que as canonizações são infalíveis?

Bento XIV, ainda que inclinado pessoalmente para a infalibilidade, respondeu assim a essa primeira pergunta: «parece-nos que ambas as opiniões [infalibilista e antiinfalibilista] devem deixar-se em sua probabilidade até que intervenha o juízo da Sé Apostólica» (De servorum Dei I, 1 e 45, nº 27).

Na falta desse juízo definitivo, põe-se esta segunda questão:

2) É lícito negar a santidade deste ou daquele canonizado?

Bento XIV responde que quem negar a santidade deste ou daquele canonizado particular seria, «se não herege, ao menos temerário; escandaloso para toda a Igreja; injurioso para com os santos; favorável aos hereges, que negam a autoridade da Igreja na canonização dos santos; suspeito de heresia, abrindo o caminho aos infiéis para que se mofem dos fiéis; defensor de uma proposição errônea, e merecedor de penas gravíssimas» (ibid., nº 28).

Como é lógico, assim como as censuras evocadas pelas bulas de canonização, também essas “notas” de Bento XIV valem para quem, “sem motivo suficiente”, negar ou colocar em dúvida publicamente a santidade deste ou daquele canonizado, mas não para quem em “seu coração” tenha ou creia ter “motivos fundados” para negá-la ou duvidar dela, mas observe o silentium obsequiosum, abstendo-se de exteriorizar publicamente sua dissensão (pág. 49, nota 126).

 

Nossa conclusão

A tudo isso acrescentamos nós que “um perigo de escândalo para a fé” pode tornar lícito, inclusive obrigatório, até no caso das canonizações, romper o silentium obsequiosum para com a autoridade, conforme ensina Santo Tomás: «quando há um perigo para a fé, os súditos são obrigados a repreender seus Prelados, mesmo em público» (Suma Teológica IIª-IIae, q. 33, a. 4 ad 2); e diz também, citando São Gregório: «se o escândalo nasce da verdade, é mister antes suportar o escândalo que abandonar a verdade» (op. cit. IIIª parte, q. 42, a. 2 ad 1).

O dito perigo dar-se-ia se se chegasse (Deus não o permita!) à canonização de João XXIII e Paulo VI para dar crédito ao concílio e à catastrófica mudança de rumo imposta ao mundo católico, ainda que o primeiro não gozasse mais do que de uma fama postiça, fabricada, de ser um homem de “natural bonachão”, ao passo que da pessoa do segundo não emanava nada que recordasse, nem de longe, o odor de santidade. Assim, torna-se sobremaneira útil, nas circunstâncias históricas atuais, ter idéias claras também sobre a infalibilidade nas canonizações, para o qual pensamos que o estudo resumido acima pode constituir uma valiosa ajuda.

 

Hyrpinus

  1. 1. Vide E. Piacentini, Infallibile anche nelle cause di canonizzazione? [Infalível também nas causas de canonização?], Roma: E. N. M. I., 1994.
  2. 2. L. Ott, Compêndio de teologia dogmática, ed. Herder, 1956, pág. 23.
  3. 3. S. Cartechini, S. J., Dall'opinione al dogma [Da opinião ao dogma], ed. La Civilta Cattolica, 1953, pág. 137.
  4. 4. L. Ott, op. cit., pág. 24.
  5. 5. Scheid, Zeitschrift f. Katolische Theologie [Revista de Teologia Católica], 1890, pág. 509
  6. 6. B. Bartmann, Manuale di Teologia Dogmatica, vol. Iº, ed. Paoline, 1949, Pág. 65.
  7. 7. N. do T.: Um “bolandista” é um membro da sociedade de jesuítas belgas encarregados na edição dos Acta Sanctorum. Seu nome deriva do sobrenome do padre J. Bolland, de Amberes (1596-1665).
  8. 8. Dá-se a canonização solene quando o Papa pronuncia «uma solene declaração formal sobre a santidade do beato», dá-se a canonização “eqüipolente” quando o Papa «se limita a dispor que um beato seja objeto de culto por parte da Igreja universal» sem pronunciar «fórmula alguma que possa denotar definição» (pág. 36, nota 93). Trata-se de um fato que traz sérias dificuldades aos “infalibilistas”, as quais desaparecem se se admite, pelo contrário, «que nenhuma canonização põe em jogo a infalibilidade» (ibi).
  9. 9. Trata-se da bula de João XV para a canonização de Ulrico.
  10. 10. Iustis poenis plectetur (será castigado com as penas merecidas), lê-se na canonização de João de Ribera (1960), Martinho de Porres (1962) e Antônio Maria Pucci (l962), sciat se poenas esse subiturus iis iure statutas qui Summorum Pontificum iussa non fecerint (saiba que sofrerá as penas estabelecidas no direito para os que desobedecem às ordens dos Sumos Pontífices), lê-se na canonização de Maria Bertilla Boscardin (1961).
  11. 11. Só na canonização de Júlia Billiart (1969) reaparece a fórmula empregada para Maria Bertilla Boscardin.
  12. 12. Somente na canonização de Miguel Febres Cordero (1984) figura uma cláusula com a fórmula, mais branda ainda, quae egimus ac decrevimus sancta sunt, nunc et in posterum (o qual julgamos e estatuímos que seja inviolável, agora e para o futuro).
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