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Art. 2 – Se Deus pode criar alguma coisa.

(II Sent., dist. I, q. 1, a. 2; II Cont., Gent., cap. XVI; De Pot., q. 3, a. 1; Compend. Theol., cap. LXIX; Opusc. XXXVII. De Quatuor Opposit., Ca; p. VIII Phys., lect. III).
 
O segundo discute-se assim. – Parece que Deus não pode criar nada.
 
1. – Pois, segundo o Filósofo, os antigos filósofos admitiram como concepção comum do espírito que do nada nada se faz1. Mas o poder de Deus não se estende até contrariar os primeiros princípios, de modo a fazer, por exemplo, com que o todo não seja maior que sua parte; ou que a afirmação e a negação sejam simultaneamente verdadeiras. Logo, Deus não pode fazer alguma coisa do nada, ou criar.
 
2. Demais. – Se criar é fazer alguma coisa do nada, então ser alguma coisa criada é vir-a-ser. Ora, todo vir-a-ser é mudar-se. Logo, criação é mutação. Mas toda mutação está em algum sujeito, como é claro pela definição de movimento, pois movimento é o ato do que existe em potência. Logo, é impossível que alguma coisa seja feita do nada por Deus.
 
3. Demais. – O que está feito necessariamente esteve, em algum tempo, para vir-a-ser. Ora, não se pode dizer que aquilo que é criado venha a ser e esteja feito simultaneamente; pois, nos seres permanentes, o que vem a ser não é, e o que já está feito já é; do contrário alguma coisa seria e não seria simultaneamente. Logo, se alguma coisa vem a ser, o seu vir-a-ser precede sua existência. Mas tal é impossível, sem que preexista um sujeito em que se sustente o próprio vir-a-ser. Logo, é impossível que alguma coisa se faça do nada.
 
4. Demais. – Não se pode percorrer uma distância infinita. Ora, é infinita a distância entre o ser e o nada. Logo, não é possível que do nada alguma coisa se faça.
 
Mas, em contrário, a Escritura (Gn 1, 1): No princípio criou Deus o céu e a terra; a isso diz a Glossa que criar é fazer alguma coisa do nada.
 
Solução. – Não somente não é impossível que alguma seja criada por Deus, mas é necessário admitir-se que todos os seres foram criados por Deus, como resulta do que já foi estabelecido (q. 44). Pois, se alguém faz alguma coisa de outra, aquela da qual faz é pressuposta à ação de quem faz e não é produzida por tal ação. Assim, o artífice opera com as coisas naturais, p. ex., a madeira e o ar, que não são causados pela ação da arte, mas pela da natureza; por sua vez, a própria natureza causa os seres naturais, quanto à forma, mas pressupõe a matéria. Se pois Deus não atuasse senão sobre algum pressuposto, seguir-se-ia que esse pressuposto não foi causado por ele. Pois, já mostramos antes2, que nada pode existir nos seres que não provenha de Deus, causa universal de todo o ser. Donde, necessário é dizer-se que Deus, do nada, traz as coisas ao ser.
 
Donde a resposta à primeira objeção. – Os antigos filósofos como já antes se disse3, só consideraram o emanarem os efeitos particulares das causas particulares, que, na sua ação, devem pressupor alguma coisa; e, assim, era comum opinião deles que do nada nada se faz. Mas isto não se dá com a primeira emanação, do princípio universal das coisas.
 
Resposta à segunda. – A criação é mutação somente segundo o modo de se inteligir. Pois, é da essência da mutação que um mesmo ser seja diferente, agora, do que era antes. Assim, ora um mesmo ser atual é diferente agora do que era antes, como se dá com os movimentos segundo a quantidade, a qualidade e a ubiquação; outras vezes o ser é o mesmo só em potência, como na mutação substancial, cujo sujeito é a matéria. Mas na criação, pela qual é produzida toda a substância da coisa, só pelo intelecto é que se pode admitir que um mesmo ser seja agora diferentemente do que foi antes; como se se entender que alguma coisa, que não existiu antes totalmente, agora exista. Mas, como a ação e a paixão convenham na substância una do movimento, e difiram somente segundo relações diversas, como diz Aristóteles4, necessário é que, subtraído o movimento, não remanesçam senão relações diversas no criador e no criado. Como, porém, o modo de exprimir siga o inteligir, como já se disse5, a criação é expressa a modo de mutação; e por isso se diz que criar é fazer alguma coisa do nada. Embora, neste assunto, mais convenha se diga fazer e ser feito do que mudar e ser mudado; porque fazer e ser feito importam relação de causa e efeito e de efeito a causa, mas a mutação importa conseqüência.
 
Resposta à terceira. – Nas coisas que vem a ser, sem movimento, simultâneos são o virem a ser e o serem feitas; quer tal feitura seja o termo do movimento, como a iluminação, pois simultaneamente uma coisa se ilumina e está iluminada; quer não seja termo do movimento, como simultaneamente se forma o verbo na mente e está formado. Assim, em tais casos, o que vem a ser é; mas, quando se diz vir-a-ser, quer-se significar que alguma coisa provém de outra e que antes não existia. Donde, realizando-se a criação sem movimento, simultaneamente alguma coisa é criada e está criada.
 
Resposta à quarta. – Tal objeção procede de uma falsa imaginação, como se existisse algum termo médio infinito entre o nada e o ser, o que é claramente falso. E tal falsa imaginação provém de que a criação é expressa como certa mutação existente entre dois termos.

  1. 1. I Physic., lect. IX.
  2. 2. Q. 44, a. 1, 2.
  3. 3. Q. 44, a. 2.
  4. 4. III Physicorum, lect. V.
  5. 5. Q. 13, a. 1.
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