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Artigo 2: O Rosário, escola de contemplação

Entre as formas habituais da devoção mariana como o Angelus, o Ofício da Santíssima Virgem e o Rosário, falaremos especialmente desta última, enquanto nos dispõe e conduz à contemplação dos grandes mistérios da salvação.

É, depois do Santo Sacrifício da Missa, uma das mais belas orações e das mais eficazes, com a condição de bem entendê-la e de vivê-la verdadeiramente.

Acontece freqüentemente que o Terço, uma das três partes do Rosário, torna-se uma oração automática, durante a qual o espírito, não estando ocupado o bastante das coisas divinas, é vítima das distrações; oração, algumas vezes, precipitada e sem espírito, ou pela qual se pedem bens temporais sem nenhuma relação com os bens espirituais, a santificação e a salvação.

Então, ao ouvir recitar assim de uma forma demasiado mecânica e negligente o Terço, alguém se pergunta: o que resta, nessa oração, feita dessa forma, dos ensinamentos contidos nas grandes e numerosas encíclicas de Leão XIII sobre o Rosário, que Pio XI recordava numa de suas últimas cartas apostólicas antes de sua morte? 

Pode-se sem dúvida fazer uma boa oração, pensando confusamente na bondade de Deus e na graça pedida, mas para render ao Terço sua alma e sua vida, deve-se recordar que ele não é mais que uma das três partes do Rosário, e que deve ser acompanhado da meditação muito fácil, aliás dos mistérios gozosos, dolorosos e gloriosos, que nos recordam toda a vida de Nosso Senhor, de Sua Mãe Santíssima e da elevação de ambos ao Céu.

 

Os três grandes mistérios da salvação

Os quinze mistérios do Rosário, assim divididos em três grupos, não são outra coisa que os diversos aspectos dos três grandes mistérios da salvação: o da Encarnação, o da Redenção e o da Vida Eterna.

O mistério da Encarnação nos é lembrado pelas alegrias da Anunciação, da Visitação, da Natividade de Jesus, por sua apresentação no templo e seu encontro no meio dos doutores.

O mistério da Redenção nos é representado pelos diversos momentos da Paixão: a agonia de Jesus no Jardim das Oliveiras, a flagelação, a coroação de espinhos, o caminho do Calvário com a Cruz às costas, a Crucificação.

O mistério da Vida Eterna nos é recordado pela Ressurreição, Ascensão, Pentecostes, a Assunção de Maria e seu coroamento no Céu.

É todo o Credo que passa diante de nossos olhos, não de forma abstrata, por meio de fórmulas dogmáticas, mas de uma forma concreta pela vida de Cristo, que descende até nós e sobe ao Seu Pai para conduzir-nos a Ele. É todo o dogma cristão, em sua elevação e esplendor, para que possamos assim, todos os dias, penetrá-lo, saboreá-lo e alimentar nossas almas com ele.

Por isso, o Rosário é uma escola de contemplação, pois nos eleva pouco a pouco acima da oração vocal e da meditação ponderada ou discursiva. Os teólogos antigos compararam esse movimento da contemplação ao movimento em espiral 1, que descrevem algumas aves, como a andorinha por exemplo, para se elevar cada vez mais alto. Esse movimento em espiral é também como um caminho que serpenteia a montanha para tornar mais fácil a subida. Os mistérios gozosos da infância do Salvador conduzem à sua Paixão e sua Paixão ao Céu.

É, portanto, uma oração elevadíssima, se for bem compreendida, pois recoloca todo o dogma diante de nossos olhos de maneira acessível a todos.

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O Rosário é também muito prático, porque nos recorda toda a moral e a espiritualidade cristã, contempladas desde o alto pela imitação de Jesus Redentor e de Maria Medianeira, que são nossos grandes modelos.

Esses mistérios devem de fato reproduzir-se em nossa vida, numa certa medida desejada para cada um de nós pela Divina Providência. Cada mistério nos recorda uma virtude, sobretudo a humildade, a confiança, a paciência e a caridade.

Pode-se mesmo dizer que há três momentos em nossa viagem para Deus: contemplamos primeiro o fim último, de onde nasce o desejo da salvação e a alegria que o acompanha; isso é o que contemplamos nos mistérios gozosos, a boa nova da Encarnação do Filho de Deus que nos abre o caminho da salvação.

Devemos então colocar os meios muitas vezes penosos e dolorosos para a libertação do pecado e a conquista do Céu. Isso é o que nos repetem os mistérios dolorosos.

Descansamos, afinal, no fim último conquistado, na vida eterna, cujo prelúdio deve ser a vida presente. É isso que contemplamos nos mistérios gloriosos.

O Rosário é, assim, muito prático, pois nos toma em meio às nossas alegrias demasiado humanas, às vezes perigosas, para fazer-nos pensar naquelas muito mais elevadas da vinda do Salvador. Também nos apanha em meio aos nossos sofrimentos freqüentemente insensatos, às vezes agoniantes, quase sempre mal suportados, para recordar-nos que Jesus sofreu muito mais que nós e por amor a nós, e para que aprendamos a segui-Lo, carregando a cruz que a Divina Providência escolheu para nos purificar. O Rosário, finalmente, nos toma em meio às nossas esperanças demasiado terrenas, para fazer-nos pensar no verdadeiro objeto da esperança cristã, na vida eterna e nas graças necessárias para alcançá-la, por meio do cumprimento dos dois grandes preceitos do amor a Deus e ao próximo.

O Rosário bem compreendido é, portanto, não somente uma oração de súplica, mas uma oração de adoração ante o pensamento do mistério da Encarnação, uma oração de reparação, recordando a Paixão do Salvador, uma oração de ação de graças, ao pensar nos mistérios gloriosos que continuam reproduzindo-se incessantemente pela entrada dos eleitos no Céu.

 

O Rosário e a oração contemplativa

Deve-se recitar o Rosário de uma forma mais simples ainda e mais elevada, contemplando pelos olhos da fé a Jesus sempre vivo, que não cessa de interceder por nós e que influi sempre sobre nós, seja sob a forma da Sua vida infantil, da Sua vida dolorosa, ou da Sua vida gloriosa. Ele vem atualmente a nós para que assemelhemo-nos a Ele. Detenhamos o olhar de nosso espírito sobre o de Nosso Senhor, que se fixa em nós. Seu olhar está não só pleno de inteligência e de bondade, senão que é o olhar mesmo de Deus, que purifica, pacifica e santifica. É o olhar de nosso juiz, porém, mais ainda de nosso Salvador, de nosso melhor amigo, do verdadeiro esposo de nossa alma. O Rosário assim recitado na solidão e no silêncio transforma-se numa conversa muito frutuosa com Jesus, sempre vivo para vivificar-nos e atrair-nos a Ele. É também uma conversa com Maria, que nos conduz à intimidade de seu Filho.

Vê-se freqüentemente na vida dos santos que Jesus vem a eles, primeiro, para reproduzir neles mesmos Sua vida de criança, depois Sua vida oculta, em seguida Sua vida apostólica e, finalmente, Sua vida dolorosa, antes de fazê-los participar de Sua vida gloriosa. Pelo Rosário, Ele vem a nós de uma forma semelhante, de modo que essa oração bem recitada se transforma pouco a pouco numa conversa íntima com Jesus e Maria.

Explica-se então que os santos tenham visto no Rosário uma escola de contemplação 2.

Algumas pessoas objetam que não se pode pensar nas palavras e contemplar os mistérios ao mesmo tempo. A isso se responde freqüentemente: não é necessário refletir nas palavras da Ave Maria quando se medita ou contempla espiritualmente este ou aquele mistério. Essas palavras são como uma cantilena, que adormece os ouvidos, isola-nos dos ruídos do mundo, enquanto os dedos estão ocupados em desfiar as contas do Terço e indicam-nos materialmente em qual dezena estamos. Assim, a imaginação está ocupada enquanto a inteligência e a vontade estão unidas a Deus.

Têm-se objetado também que a forma monótona do Terço gera o automatismo. Essa objeção, que concerne ao Terço mal recitado, não tem razão de ser contra o Rosário, que nos familiariza com os diversos mistérios da salvação, recordando-nos, em nossas alegrias, tristezas e esperanças, como esses mistérios devem reproduzir-se em nós.

Toda oração pode degenerar em automatismo, até o Ordinário da Missa e o Prólogo do Evangelho de São João lido todos os dias no final do Santo Sacrifício. Mas isso provém não certamente de que essas orações sublimes sejam imperfeitas, mas de que não as dizemos como se deve, com fé, confiança e amor.

 

O espírito do Rosário tal qual foi concebido

Para melhor compreender o que deve ser o Rosário, deve-se recordar como São Domingos o concebeu sob a inspiração da Santíssima Virgem, no momento em que o sul da França era devastado pela heresia Albigense, imbuída dos erros maniqueístas, que negava a bondade infinita e a onipotência de Deus pela afirmação da existência de um princípio do mal muitas vezes triunfante.

Não só a moral cristã foi atacada, mas também o dogma, os grandes mistérios da criação, da Encarnação redentora, da vinda do Espírito Santo e da vida eterna à qual somos todos chamados.

Foi então que a Santíssima Virgem revelou a São Domingos um modo de pregação até então desconhecido, que Maria disse-lhe ser para o futuro uma das armas mais poderosas para lutar contra o erro e a adversidade. Arma muito humilde e simples, que faz o incrédulo sorrir, porque não compreende os mistérios de Deus.

Sob a inspiração que havia recebido, São Domingos dirigiu-se aos povos e cidades heréticas, reuniu as multidões e pregava-lhes sobre os mistérios da salvação, da Encarnação, da Redenção e da vida eterna. Como Maria havia lhe inspirado, distinguiu os três tipos de mistérios: gozosos, dolorosos e gloriosos. Pregava alguns momentos sobre cada um desses quinze mistérios e, após cada pregação, fazia-lhes recitar uma dezena de Ave-Marias, um pouco como se reza hoje a hora santa, em muitas partes intercaladas de orações ou de cantos religiosos.

Então, o que a palavra do pregador não conseguia fazer admitir, a doce oração da Ave Maria introduzia no fundo dos corações. Esse gênero de pregação foi o mais frutuoso 3

Essa forma de oração foi pregada com grande zelo na França pelo Bem-aventurado Alano de la Roche e, em seguida, por São Luís Grignion de Montfort, sobretudo em Vendée e em Poitiers.

Se vivermos dessa oração, as nossas alegrias, tristezas e esperanças serão purificadas, elevadas e sobrenaturalizadas; veremos cada vez mais claro, ao contemplar esses mistérios, que Jesus, nosso Salvador e nosso modelo, quer nos assemelhar a Ele; comunicar, primeiramente, um pouco da Sua vida na infância e da Sua vida oculta; em seguida, alguma semelhança com Sua vida dolorosa, para fazer-nos participar, por fim, de Sua vida gloriosa na eternidade.

  1. 1. Motuus obliquus (aut in forma spirae), diferente do movimento reto e do movimento circular. Cf. santo tomás, IIª, q. 180, a. 6. O movimento em linha reta eleva-se diretamente de um fato sensível, narrado, por exemplo, numa parábola como a do filho pródigo, à contemplação da misericórdia divina. O movimento em espiral eleva-se progressivamente pelos diversos mistérios da salvação até Deus, a quem eles nos conduzem. O movimento circular é semelhante ao da águia que chega aos cumes no ar e descreve aí muitas vezes o mesmo círculo, ou plana contemplando o sol e todo o horizonte que sua vista possa abarcar.
  2. 2. Na obra La Vie Spirituelle, de abril de 1941, o Pe. m. j. nicolas, o. p. escreveu sobre um santo religioso que morreu sendo provincial dos dominicanos de Toulouse, o Pe. Vayssière: “A graça da intimidade mariana que havia recebido, ele a devia, em primeiro lugar, ao estado de humildade ao qual se tinha reduzido e em qual havia consentido. Mas a devia também ao Rosário. Nos longos dias de solidão na Sainte-Baume (uma montanha do Var, onde se diz que Maria Madalena havia se retirado), ele tinha o costume de recitar vários Rosários durante o dia, às vezes até seis. Não era uma recitação mecânica e superficial; dizia-o muitas vezes de joelhos, punha nele todos os seus sentidos, saboreava-o, desejava-o e estava convencido de que no Rosário se encontra tudo o que se pode desejar na oração: «Recitai cada dezena – dizia – mais comungando que refletindo com a graça do mistério, e vivendo do espírito de Jesus e de Maria tal como nos apresenta o correspondente mistério... O Rosário é a comunhão da tarde (em outro lugar... diz que é a comunhão de todo o dia), que traduz em luzes e em resoluções fecundas a comunhão da manhã. Não é somente uma série de Ave-Marias recitadas com devoção, é Jesus Cristo revivendo na alma pela ação maternal de Maria». Vivia, portanto, dessa forma, num ciclo contínuo do Rosário, “envolto” por Cristo e Maria – segundo sua expressão – comungando em cada um dos estados da graça e penetrando, por esse meio, nos abismos do coração de Deus: «O Rosário é um encadeamento de amor entre Maria e a Trindade». Compreende-se que o Rosário tenha se tornado, para ele, uma contemplação, um caminho para a união pura com Deus, uma necessidade semelhante à da comunhão”.
  3. 3. O primeiro fruto do Rosário foi a vitória dos cruzados contra os albigenses em Muret. Enquanto Simão de Montfort lutava à frente dos cruzados, São Domingos, retirado numa igreja, implorava o auxílio de Maria e o conseguiu. Os hereges acabaram sendo derrotados. Foi o triunfo completo da fé sobre o erro.
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