Skip to content

XX. Charles Maurras

XX

Charles Maurras

VIDA: 1868-1952. Provençal (de Martigues). Filho de pequeno funcionário. Juventude em Paris, vida de homem de ação e escritor (jornalista político, crítico literário, poeta). Acadêmico, expoente do felibrismo1, chefe da “Ação Francesa”, junto com Léon Daudet. Preso diversas vezes. Morte em prisão domicilar2 .

Seu pensamento deu origem à uma escola, compreendendo escritores e críticos (H. Massis e, por bastante tempo, Bernanos), historiadores (Jacques Banville,. Pierre Gaxotte etc.), filósofos políticos (Côn. Benoist) etc.. Compararam seu estilo de ação ao dos Enciclopedistas. De fato os jovens de 1961 geralmente não fazem idéia da profundidade com que a ação maurrasiana se exerceu durante décadas nas carreiras liberais, no mundo universitário, nos meios literários e até em algumas camadas populares (sobretudo no oeste e no midi). Ainda hoje a ele se consagram estudos importantes em várias universidades estrangeiras, em especial – vejam só – nos Estados Unidos (Columbia University etc.).

OBRA: é abundante, e sua riqueza literária é reconhecida universalmente. Mas não nos ocuparemos disso agora, e sim com o conteúdo doutrinal dos escritos maurrasianos. Existem diversas obras sobre a “Ação Francesa”3, mas citaremos tão-somente estas aqui: “Mes idées politiques” (Grasset), “Réflexions sur la Révolution de 1789” (Les îles d’Or), “de Démos à césar” (ed. Du Capitole), “L’avenir de l’intelligence” (Flammarion), sem falar no monumental “Dictionnaire politique et critique” (Fayard).

- O Pensamento Maurrasiano (caracteristicas gerais)

Possui múltiplas fontes, entre as quais em primeiro lugar a “Política”, de Aristótles, que Maurras tinha em grande apreço; a obra de Bossuet, a de Augusto Comte, a quem Maurras atribui grande valor ao plano político; textos de escritores vários, como Balzac, Sainte-Beuve, Renan (o da “Réforme intellectualle et morale”); Taine (“Origines de la France Contemporaine”) etc.

Maurras tira daí a idéia de um empirismo histórico, o qual chamará “empirismo organizador”. Esclareçamos já que Maurras não sofreu quaisquer influências de Nietzche, cujo espírito sempre detestou e rejeitou. Censura neste a desumanidade, o excesso, o individualismo anárquico etc...

O pensamento de Maurras, apesar de por muito tempo fechado à metafísica e ao cariz transcendente do cristianismo, pode se caracterizar como realismo intelectualista. Oposto ao idealismo (v. lição I sobre essa noção) no qual vê um dos principais perigos para a civilização, dá a primazia à inteligência, em lugar do ímpeto cego e das paixões tumultuárias. Por isso combate o espírito do romantismo, para ele sinônimo de incoerência e de destruição (v. “Romantismo e Revolução”).

Maurras acredita com firmeza na existência da verdade política, e isso em dois sentidos:

  1. a)  há em primeiro lugar princípios demonstráveis e válidos para toda sociedade, seja ela qual for. Maurras, mui helênico nesse ponto, acredita como Aristóteles, Comte e Camus, que existe uma natureza humana estável que se conserva através do tempo e do espaço (v. mais adiante a discussão entre liberalismo e democracia). Aqui seu pensamento opõe-se ao de Hegel, Marx e Sartre;

  2. b)  aspectos relativos a certo país, em certa época. Aqui Maurras opõe-se ao espírito de abstração e ao falso universalismo do séc. XVIII (sobretudo a Rousseau, sua ovelha negra). Não haveria como governar de igual maneira povos de civilizações diferentes. O mesmo regime concreto não convém a todos (desta feita Maurras nunca acreditou que se haveria de ser monarquista na Suiça ou nos Estados Unidos). Ele chega a ser favorável ao regionalismo e à descentralização, no interior de cada país.

- As idéias políticas (em detalhe):

Para maior clareza, dividiremos esta exposição em duas partes.

I. aspecto negativo ou crítica dos erros;
II. aspecto positivo ou a teoria das instituições salutares;

 

I. CRÍTICA DOS ERROS

Para Maurras pode-se resumi-los em três idéias fundamentais: o liberalismo, a democracia e o humanitarismo.

A. O liberalismo é tão-somente um individualismo (não é errado dizer “individualismo liberal” ou “liberalismo individualista”, tanto faz). Pode-se encarnar em três domínios diferentes: político, econômico, religioso.

I. Maurras trata com rigor o liberalismo político (como Augusto Comte, enxerga nele a origem distante da reforma luterana). Antes do mais o liberalismo político desconhece o que o homem deve à sociedade. Uma sociedade civilizada é aquela em que o homem mais recebe do que dá. Mesmo o mais inteligente dentre nós, o homem de gênio, é sempre inferior ao conjunto do corpo social, porque este não conta apenas com a massa dos mediocres mas também com numerosas almas superiores4 . Aristóteles já dizia que o que se recusa à vida social ou é um bruto ou um Deus (poderíamos dizer uma fera ou um anjo). A lógica interna do individualismo liberal é anarquista; a diferença é apenas de grau, e não de natureza, entre o anarquista que joga a bomba e o burguês alinhado que abala a coesão social em nome das “luzes”...

De espírito anarquista, o liberalismo clássico é incapaz de governar. Das duas uma, ou bem faz o jogo do que Max Weber chamou de o “liberalismo heróico” – dá plena liberdade a todos os que lhe querem destruir, desde o comunismo até ao facismo, condenando-se à morte (v. o desmoronamento desse tipo de estado com Kerensky na Rússia, Karolyi na Hungria, Giolitti na Itália, Brüning na Alemanha etc); ou bem declara que não há liberdade para os inimigos da liberdade – mas como é ele que tem o poder para declarar quem é o inimigo, acaba por levar à pique o seu príncípio. Teremos pois o liberal de direita, que persegue os comunistas e deixa em paz o facismo, e o liberal de esquerda, já conquistado pelo “sentido da história”, e que é todo severidades para as pessoas de direita, enquanto deixa o comunismo graçar por todo lado.

Não é o caso de dizer que Maurras seja totalitário, longe disso: ele defende a monarquia tradicional (v. 2a parte da exposição), na medida em que lhe parece um regime de equilíbrio, evitando por sua vez a tirania cesarista e a anarquia liberal.

Citemos essas opiniões de bom senso chão:
“A liberdade não é um princípio, a liberdade não é um fim. Como a autoridade..., a liberdade não passa de meio
5, aqui excelente, acolá detestável”6 . “As liberdades que apoiam o progresso nacional7  devem ser favorecidas, as liberdades que não a impedem devem ser respeitadas, as liberdades que arriscam contradizê-la devem ser vigiadas, as liberdades que a contradigam francamente devem ser reprimidas”8. “O principal sentido da idéia de liberdade é negativo – a ausência de entraves. Para maior esclarecimento há-de se definir quais os entraves. Os entraves que se impõem aos criminosos, aos loucos, até às crianças podem ser úteis... os que se impõem a si podem constituir a virtude, i. é, o maior grau de poder, ou ainda degenerar em pura impotência. Os entraves são conforme o caso bons ou ruins: eis ainda assim a liberdade”.

“Passemos ao segundo sentido; o sentido positivo da palavra liberdade é o poder. Poder de fazer o quê? Nas mãos de quem? O poder de destruir não é o de construir, o poder do celerado e do insensato, o poder do tolo, o poder do homem de bem e de gênio – podem eles se reduzirem a um mesmo princípio? Há-de se explicar, precisar, definir esse poder”9 .

  1. Liberalismo econômico. Conhece-se bem os malefícios morais, sociais e materiais do capitalismo liberal, assim podemos passar mais rápido por esse ponto, sobre o qual não esperamos resistência da parte do auditório universitário e jovem. Que o auditório saiba que Charles Maurras criticou por sua vida afora essa forma inumana da grande propriedade privada. Um teórico como La Tour du Pin (“Jalon de route”, “Pour um ordre social chrétien”), ou uma escola de economisas e sociólogos social-cristã10 manteria boas relações com Maurras e os dirigentes da “Ação Francesa”11

  2. Liberalismo religioso. Não está diretamente relacionado com o objeto em exposição nem ademais com a visão de Maurras, que considerava sobretudo as conseqüências intelectuais e políticas. Lembremo-nos simplesmente que se não deve confundir caridade e tolerância – que são bens – com indiferentismo doutrinal e relativismo cético – que mais das vezes dominam o plano de fundo do pensamento dito liberal, rejeitado amiúde nas encíclicas de Gregório XVI, Pio IX, Leão XIII12  e São Pio X.

B. A Democracia pode reduzir-se à uma essência fundamental em meio à diversidade das formas particulares (Maurras pratica aqui uim método mui análogo à “redução eidética”, de Husserl: variam-se as essências ou conteúdos de pensamento para ver o que sobra de estável; p. ex., elimina-se da definição de triângulo tudo o que é próprio às suas espécies – triângulos eqüilátero, isóceles, escaleno, retângulo). A verdadeira democracia (seja ela liberal ou “popular”) pauta-se por duas idéias-força: a igualdade e o sufrágio universal.

a) A idéia de igualdade: recordemos que em face dessa noção existem três condutas (e não duas).

1a. A desigualdade absoluta, em que se contempla apenas as diferenças entre os homens, e não suas semelhanças profundas. Esta é a conduta racista, raíz da escravidão, do regime de castas etc.. Da escravidao antiga ao nazismo, passando pela sociedade hindu, é tudo para alguns e nada para os demais;

2a. O igualitarismo absoluto ou nivelador, que só contempla a identidade de essência ou de natureza entre os homens, cego à sua extrema diversidade concreta. Este é o universalismo desmedido de Rousseau e dos teóricos da democracia integral, em especial os jacobinos, para quem qualquer desigualdade é artificial e injusta – eis uma conduta bem em voga hoje em dia;

3a. A afirmação simultânea de identidade – logo, de uma como igualdade – essencial entre os homens, visto que possuem idêntica natureza; e de desigualdade acidental (em sentido aristotélico: tamanho, força, inteligência, valor moral etc., variando para mais ou para menos).

Do primeiro ponto de vista Maurras tira que o homem é uma pessoa13 , possui direitos fundamentais, não pode ser tratado como coisa (oposição à escravidão, ao racismo, ao regime de castas etc.). Do segundo ponto de vista, que há-de se ter em grande consideração as diversidades entre indivíduos e grupos. Seguindo a demonstração cem vezes percorrida por Maurras – e contra a qual nunca se respondera nada de sólido – conclui-se que uma sociedade verdadeiramente civilizada é sociedade diferenciada (onde os membros não são todos aptos a fazer de tudo).

Diferenciar é hierarquizar; hierarquizar, desigualar: não há como sair disso, senão por vãs argúcias. É falsidade fazer coro com Rousseau e os jacobinos, dizer que “a justiça é a igualdade”; força é lembrar da distinção aristotélica (simples bom senso!) entre justiça comutativa e justiça distributiva, a primeira fundamentada na igualdade aritmética, a segunda em uma como proporção geométrica (conforme recorda Leão XIII contra o igualitarismo moderno).

Em verdade a desigualdade enquanto tal não é injusta. Como a liberdade, pode ser ela boa ou má conforme o caso.

A finalidade ideal das sociedades não deve ser posta em termos de igualdade nem de desigualdade do quer que seja; a finalidade ideal das sociedades é a prosperidade geral, não o uso de tal ou qual meio em vista desse fim.

A uniformização e a desuniformização, tanto quanto a opressão e a emancipação são apenas meios, e não fins, que variam com o tempo, o lugar, as circunstâncias...”14 .

É Maurras nesse ponto severo e corajoso, tendo-se em conta a veneração supersticiosa de que a palavra “democracia” atualmente é objeto: “A democracia não passa de mentira... não passa de uma palavra venenosa, e representa um sistema político que vai contra a natureza... A democracia é o mal, é a morte”15 .

(Há necessidade de esclarecer que tal veredito não investe contra o progresso social nem a melhoria da condição das massas? Voltaremos à carga na 2a parte).

b) o sufrágio universal em política: é normal que o homem vote sobre problemas que conhece (sindicais, regionais, familiares etc.), mas parece absurdo a Maurras pôr a direção dos negócios públicos – tão difíceis e delicados – na conta de sufragantes incompetentes. Investe energicamente contra o mito da vontade geral, apontando que a democracia parlamentar não passa de paravento para interesses pouco ligados ao bem comum: a opinião é a soberana em semelhante regime, diz ele. Ora a opinião é a impressa, e a impressa é sustentada por dinheiro, de modo que não há regime mais propício à plutocracia de fato que a democracia parlamentar e liberal, incapaz de governar com pulso firme e realizar reformas ousadas16 . A democracia liberal é incapaz de se defender contra o capital internacional e a subversão comunista. É feita sob medida para perder a civilização ocidental.

C. O humanitarismo é antes estado de espírito, não apenas instituição, que se inspira todavia em estruturas políticas oriundas da Revolução (“Romantisme et Révolution”, “Trois idées politiques”’, “Réflexions sur la Révolution de 1789” etc.). Caracteriza-se ao mesmo tempo pelo amor abstrato ao homem em geral (de preferência se ele está longe – é o que a fenomenologia de Max Scheler chama de “o amor ao distante” - em oposição ao amor ao próximo – pois que só se empenha por meio de proclamações verbais ou escritas; o próximo de carne e osso é mais das vezes difícil de agüentar...), e pelo arrebatamento sentimental masoquista, sempre presto a aljofarar de lágrimas os criminosos, os destruidores ou inimigos do país, e a odiar os defensores da tradição doutrinal ortodoxa ou da segurança material da pátria17. Em quase nada lembra a caridade, como o crêem amiúde muitos cristãos atuais, antes constitui-se em sua contrafação mais vergonhosa e prejudicial18.

II. INSTITUIÇÕES SALUTARES

Os fundadores da “Ação Francesa” (Maurras, Lucien Moreau, Henri Vaugeois, Maurice Pujo etc.) eram pessoas de origem humilde, e ainda por cima de formação republicana, por vezes bem adiantada. Chegaram à monarquia por meio do estudo e da meditação, indo contra a corrente de todas as idéias herdadas em seu meio.

Marcados pelas vicissitudes políticas da França moderna, e pela sua incapacidade de reencontrar verdadeira estabilidade desde a Revolução Francesa, chegaram ao “nacionalismo integral” por meio das crises do boulangismo, do affaire Dreyfus e da ameaça alemã a partir dos anos 70. A expressão “nacionalismo integral”, causa de muitas controvérsias (muitas vezes intencionais e de sinceridade duvidosa), não significava imperialismo agressivo, nem racismo (Maurras não acredita em raças, mas em patrimônios culturais), antes um patriotismo vigilante, iíntegro ao ponto de aceitar, se houvesse necessidade, um regime contrário a preconceitos sentimentias, caso o bem do país o exigisse.

Encontrara a partir desse ponto de vista a idéia monárquica, por meio da meditação e da ilustraçao histórica.

Assegura a monarquia, melhor que qualquer outro regime, a unidade, a continuidade, a responsabilidade indispensável ao poder. A unidade: nenhum grupo, assembléia pode ter – e com razão – a unidade espiritual e sentimental de um só homem19 . Muitos aqui vão reclamar de totalitarismo e ditadura. Mas é justamente isso que Maurras não deseja. O título do livro já citado muitas vezes, “De Démos à César”, significa temor e recusa. Para Maurras, a anarquia liberal, a democracia parlamentar geram a ascensão de César e de sua tirania, quando os defeitos daqueles sistemas tornam-se por demais evidentes e insuportáveis. A Revolução Francesa termina em Napoleão I, e a reviravolta do ano de 1848 leva Napoleão III ao poder. Depois César é arrastado pelo fracasso e desmoronamento nacionais (Waterloo e Sedan). Retorna o povo à anarquia parlamentar etc.. Há aí algo que lembra a oscilação do pêndulo, ou a teoria grega dos ciclos.

Ora assegura o poder monárquico tanto a unidade no momento quanto a constância na duração. O princípio de hereditariedade – contra o qual os franceses aprendem desde cedo a se indignarem (“e se o delfim for um imbecil etc...’) – de fato é uma garantia contra a irresponsabilidade, a guerra civil, o questionamento freqüente da legitimidade do poder. Interessa a conservação do patrimônio não somente ao indivíduo, mas à sua família. Proporciona-se à linhagem tempo para pôr em prática planos de longo prazo, permitindo a correção dos erros. Não reconhecia o Comitê de Salvação Pública que, durante a existência da monarquia francesa, esta nunca cometera um deslize vultoso em política estrangeira “até 1756” (data da aliança austríaca que, diga-se de passagem, era uma obra-prima de perspicácia, visto que a Prússia tornara-se nossa inimiga no 1!)? Mesmo os reinados mais desacreditados contribuíram com algo20. A exemplo do que recentemente salientou um sociólogo – por sinal, um democrata – de Louvain, há-de se julgar os regimes não se baseado em desvios de conduta, antes a partir de períodos longos, de visões de conjunto. Limitar-nos-emos à transcrição de algumas linhas de um amigo de Maurras, o historiador provençal Frederico Amouretti:

“Digo à nação: cidadãos, contaram-vos que os reis eram monstros: entre eles houve, é verdade, homens fracos, pouco inteligentes, vários medíocres, depravados, e talvez dois ou três malvados. Existiram poucos notáveis – a maioria era de homens de inteligência meã e conscienciosos. Contemplai- lhes a obra, e eis a França. Digo ao rei: não atenteis dentro da série de vossos ancestrais nem a São Luís, Henrique IV, Luís XIV. Atentai ao bom rei Luís VI. Derrotou os barões salteadores, transformou os barões amigos em prebostes, aguerridos defensores do povo humilde de França, camponeses e artesãos, e deu aos burgueses21  verdadeiras e extensas liberdades, contudo definidas e regradas. Fora esta a tarefa indispensável para a glória vindoura e secular”22 .

Para Maurras não se trata de monarquia parlamentar à inglesa, nem de monarquia despótica, como p. ex. o império chinês antes de 1911, mas de monarquia autoritária23  e representativa (eleição de assembléias consultivas e legislativas), acercado o rei de competentes conselhos especializados.

Note-se que Maurras sempre protagonizou campanhas acaloradas contra a centralização herdada do jacobinismo e do Império, os excessos parisienses, e a favor dos centros culturais regionais. Não esqueçamos que ele era discípulo fervoroso de Mistral, e membro importante do Felibre. Daí a célebre distinção entre “a liberdade” e “as liberdades”, com proveito destas frente àquela.

No plano social a ênfase punha-se na necessidade de harmonizar as relações entre classes24. Para ele a classe está longe de ser o fundamento último da sociedade e de explicar os conflitos entre homens. Propõe uma solução corporativista (associações “verticais” de produtores interessados no mesmo ramo de negócios), diferente do sindicalismo que opõe assalariados e empregadores (sindicalismo do tipo socialista ou comunista)25 .

Insiste Maurras, em oposição a certo idealismo moralista (v. lição I do curso) e ao marxismo (v. lição XIX, sobre o marxismo-leninismo, pp.87-91), no papel do político enquanto tal. Eis o sentido do ilustre aforismo: “Antes do mais, política”, que junto com “nacionalismo integral” e umas quantas outras fórmulas chaves é fonte de controvérsias e calúnias sem fim. “Antes do mais, política” não quer dizer que a política era o que em si havia de mais importante, mas apenas que na ordem dos meios força é começar pela reforma das sãs estruturas e boas instituições, sem as quais os esforços e a boa vontade dos povos arriscam-se ao desperdício (Maurras diz em algum lugar: “Não se constrói um hospital sobre um terreno bombardeado”). Não se trata de primazia de valores, antes, de primazia cronológica. Diziam os escolásticos quase o mesmo com o axioma “O fim (a meta) é o primeiro na intenção, e o último na execução”. Se quero construir uma casa, devo tê-la já em plano na cabeça, contudo começo por cavar buracos na terra para as fundações. Maurras jamais negara a necessidade de uma obra de formação doutrinal e de evangelização anterior ao reestabelecimento das estruturas. Ele simplesmente fala do dever do político, de uma divisão do trabalho.

- Opiniões sobre o futuro:

Nunca pensou Maurras em provocar um maremoto para conduzir seus amigos ao poder, seja por meio de eleições ou um grande partido que basculasse o Estado. Com paciência infindável, sempre se batera valendo-se da desagregação das instituições parlamentares e da ação capilar nas esferas influentes. Nunca escondera suas esperanças (o que por vezes custou-lhe caro): “Em nome da razão e da natureza, em conformidade com as vetustas leis do universo, em nome da salvação da ordem, da duração e do progresso da civilização ameaçada – singram todas as esperanças dentro da barca da Contra-Revolução”26 .

- Antes de concluir queríamos dizer algumas palavras sobre a posição de Maurras para com o cristianismo, amiúde desfigurada – mais que suas idéias propriamente políticas – por clérigos cuja paixão democrática ou progressista atropela a caridade ou a simples honestidade natural.

- Nascido em família católica, a educação livre fê-lo perder a fé – ao menos em aparência, assim nos afigura – durante a adolescência, após grandes tribulações pessoais (ficou totalmente surdo; podemos imaginar sem esforço a magnitude que assumiu tal provação para um rapaz brilhante, superando tal obstáculo apenas por meio da força de vontade. Desde então este fora seu proceder: não-adesão ao dogma, mas simpatia e respeito pela Igreja como um todo. Nunca afirmara, como Marx ou Sartre, que Deus não existia, nem fizera dessa negação a condição da liberdade humana, nem mesmo chegou ao ponto de afiançar como Augusto Comte que “não se pode contar com Deus, ainda que Ele realmente exista”. Ele tão-somente declarou: “Não consigo ter fé, e por isso sofro como se me faltasse algo”, o que é muito diferente27.

- Não se pode negar que Maurras, em seus escritos de juventude, não tivesse trechos absolutamente inaceitáveis e chocantes para a consciência cristã, nas quais culpa o Evangelho pelas idéias revolucionárias. Seus mais rigorosos argumentos teológicos dizem-no sem meias palavras. Mas enfim qual relação há entre tais erros e a teoria da descentralização regional, ou a crítica do liberalismo individualista? Não conseguimos vislumbrá-lo. Tanto mais que a simpatia de Maurras pelo catolicismo fá-lo aceitar a Igreja qual ela é, estando mui distante de ver no catolicismo um meio de apaziguar os pobres28. Chegou mesmo a dizer o contrário:

“Quem disse que o povo precisa de religião disse uma estupidez. O povo precisa de religião, de educação, de um mecanismo de freios e contrapesos para regrar seus governantes, conselheiros e chefes, devido justamente ao papel de direção e moderação a que estes são chamados a exercer junto ao povo: se os furores da besta humana são motivo de temor para todos, convém temê-los na proporção em que a besta fruir de maior poder e campo de ação para devastar (“Mes idées politiques”, p. 47) Vê-se aqui quão distante Maurras está da oposição nietzscheana entre moral de senhores e moral de escravos!

Paralelamente enaltece em termos um tanto austeros o catolicismo por ser “o templo das definições do dever”, e admira-se da teologia católica tradicional: “Sua peculiaridade está na formação de sínteses encadeadas do princípio ao fim, coordenadas através dos séculos por inteligências sutis e vastíssimos espíritos humanos, de sorte que se pode dizer que ela limita, retém, distribui e classifica tudo. Não há discussões inúteis, mas sempre conclusões. As dúvidas se resolvem em afirmações; as análises, tão longe sejam levadas, em reconstituições brilhantes e completas” (“Trois idées politiques” pp. 67-69). Maurras admirava em especial o pensamento de São Tomás de Aquino, e tinha por amigos, admiradores e colaboradores alguns dos teólogos tomistas mais autorizados de nosso tempo (o que lhe valera – duvidamos disso – um acréscimo no ódio de modernistas e liberais).

Entretanto o estudante que nos lê não vai conseguir conter-se: “Mas Roma não condenou a A.F. e Maurras?”Limitar-nos-emos a uma só resposta, a única que a essa altura justifica nossa orientação concreta: o conflito entre Roma e a “Ação Francesa” se resolveu definitivamente em 1939. Nessa ocasião o Papa Pio XII dirigira à prioresa do Carmelo de Lisieux uma carta em que, ao mencionar os dirigentes da A.F., abençoava “os homens cujos talentos ainda (Nos) afiguram como admirável promessa para a Causa de Jesus Cristo” (de Castelgandolfo, a 18 de agosto de 1939). Depois disso, que pensar da honestidade das pessoas que enchem a boca para falar dos “erros maurrasianos”, mas no entanto são avaras em precauções contra a infiltração comunista?

- É pura vilania comparar os católicos que se inspiram nas opiniões maurrasianas em um plano puramente natural, com os progressistas que se aliam aos comunistas. No primeiro caso o cristão alia-se por eventualidade a incréus de boa-fé, reverentes à missão civilizadora da Igreja, e embora estes não vislumbrem-na em toda a transcendência, desejam-lhe apenas o bem. No segundo caso corroboram com pessoas cuja finalidade precípua é a destruição da idéia de Deus por meio da doutrinação e violência. Qual medida em comum há entre ambas as posições? Não é em nós que se vê “a paixão desvairada...”29.

CONCLUSÃO GERAL

Para quem recuse o marxismo, e contudo não se deixa seduzir pela democracia liberal, nem pelo cesarismo totalitário, o pensamento maurrasiano fornece um quadro político que o cristão deve assumir em uma perspectiva superior e, eventualmente, corrigir em tal ou tal ponto, mas que a nosso ver não possui equivalentes nem substitutos, em razão do equilíbrio e da solidez sempre vizinhas às evidências mais palmares. O que talvez haja encanecido em Maurras são as imagens de que se valia às vezes, empréstimos dos combates de juventude e de madureza; a preocupação exclusiva frente ao perigo alemão, que não urge mais hoje em dia; por vezes uma formulação tacanha e negativa do interesse francês. Nada disso é essencial à sua obra, que ainda nos conserva o valor e a novidade.

“A verdadeira tradição é crítica”. Em toda tradição como em toda herança, um ser racional faz e deve fazer o desconto dos passivos.

A tradição não é inércia, mas “seu contrário” (“Mes idées politiques”, p. 67). O pensamento de Maurras tem o mérito de recordar-nos que a ação não é um absoluto, mas que precisa de uma norma, uma idéia preliminar. Ela nos previne do romantismo da catástrofe e da tentação racista ou totalitária: “O importante é pensar como se deve, querer onde se deve, agir quando se deve”. 

 

  1. 1. Felibrista (de felibre, termo cunhado em 1854) diz-se do movimento poético que no séc. XIX francês promoveu a revivescência da língua d’oc moderna como meio de expressão literária. Esse movimento romântico tinha por projeto a defesa dos valores locais da cultura provençal. Ilustraram o movimento, além do citado Charles Maurras, Frédéric Mistral (1830-1914), ganhador do Nobel, em 1904, quando o prêmio ainda se poderia considerar distinção de valor. [N. da. P.]
  2. 2. É impossível retomar aqui o problema do comportamento de Maurras durante a ocupação. Maurras nunca fora germanófilo nem pró-nazi, como testemunha sua obra. Ele representava a terça parte que, entre a resistência militante e os colaboracionistas, tentava salvar o que podia da realidade francesa durante esses anos difíceis. Os agentes alemães detestavam-no e combatiam-no. O homem de espírito honesto poderá consultar a estenografia do processo (“Le procès de Charles Maurras”. Albin Michel).
  3. 3. M. de Roux fizera uma boa apresentação geral: “Ch. Maurras et le nationalisme d’Action Française” (Grasset).
  4. 4. Um dos sofistas habituais do individualismo clássico consiste em opor o indiíduo notável à coletividade amorfa e rotineira, amputando da sociedade tudo que em si se compõe de valores superiores.
  5. 5. Meio de o homem se realizar hamoniosamente. Aqui como sempre aliás Maurras retoma um tema católico tradicionalíssimo, enunciado à exaustão nas Encíclicas.
  6. 6. “De Demos à César”
  7. 7. Veremos que Maurras não o erige como um idolo racista.
  8. 8. pp. 178-179
  9. 9. pp. 188-189.
  10. 10. Não se deve confundi-los com os democratas cristãos, como os do ‘Sillon” (Marc Sangnier etc.), que ligam – artificial e desastradamente, em nossa opinião – o problema social com o destino da democracia parlamentar.
  11. 11. Pouco antes de sua morte La Tour du Pin, ao caminhar por uma estrada, na ocasião do congresso da “Ação Francesa”, declarou que “não é La Tour du Pin que está na A.F., mas a A.F. que está em La Tour du Pin!” O que nos prova de relance quão enganadores são os clichês sobre a “direita” (conservadora e anti- social por natureza) e a “esquerda” (generosa e ‘social’ por definição), uma vez que de fato existem duas direitas e duas esquerdas. A direita conservadora e tacanha, a direita doutrinal e consciente dos problemas sociais (presente em alguns intelectuais em particular); a esquerda realmente preocupada com o progresso social, a esquerda rotineira e conservadora, da qual um grande partido (que não nomearemos) fora por muito tempo a ilustração fiel, encontrando no anticlericalismo demoagógico o exutório à combatividade reivindicativa das massas... Idem para a influência dos “grandes interesses”: a)  a grande propriedade fundiária ou rural é quase inteiramente de “direita”; b)  a industria está bem dividida: alguns meios são progressistas, tecnocratas etc.; c)  as finanças lidam quase todo o tempo pela subversão; sendo insaciável ela tem tudo a ganhar e nada a perder, em razão de sua estrutura fluida e cosmopolita. “As tiradas mais violentas contra os ricos são feitas sob medida para a plutocracia dos dois mundos” (Maurras, “L’avenir de l’intelligence”, p. 84). Basta vislumbrar nos dias atuais uma certa “inteligentsia”, mais abonada em jóias, quadros, vivendas e tapetes que o meio reputado “reacionário”...
  12. 12. Qualifica-se tolamente Leão XIII de “o Papa de esquerda”(?!) porque aconelhara aos católicos franceses o aliarem-se à República. Esquecem que ao plano doutrinal fora ele de imensa firmeza, condenando em diversas oportunidades a ideologia da Revolução Francesa (v. em especial as encíclicas “Diuturnum illud” e “Libertas praestantissimum”).
  13. 13. O que de modo algum justifica o “personalismo’, que se nos afigura por motivos bem precisos erro doutrinal. V. nossos textos mimeografados da conferência sobre “La philosophie politique et J. Maritain, ou Thomisme et Révolution” e “Le personnalisme, mythe ou vérité?”.
  14. 14. “De Démos à césar” (t.I, pp. 135-139). A boa desigualdade (não falamos da coexistência da fortuna excessiva de uns frente à miséria de outros!) é a medula da civilização. V. Marcel de Corte, da Universidade de Liège, em um artigo sobre o tema in “Étude Carmélitaines”, de 1939, no especial que apareceu sob o título de “Les hommes sont-ils égaux?”
  15. 15. “Enquête sur la monarchie”, ed. 1911, p. 119;
  16. 16. Será necessário dizer que se esperou até 1936, até o surgimento do Fronte Popular, para que se vissem realizadas reformas sociais cujos beneficiários deveriam ser os trabalhadores alemães de antes de 1914?
  17. 17. “Sou mais sensível aos males de meu país que aos males que lhe fazem”, escrevia há pouco um cronista de um hebdomadário que usurpa o nobre título de “cristão”.
  18. 18. Recordemos aqui a concordância entre Maurras e o pensador russo Constantino Leontieff, que aqui descrevia um século inteiro: “O pretenso cristianismo humanitário, e a absurda remissão universal, e o cosmopolitismo sem dogmas definidos, e a pedagogia do amor sem o ensino do amor de Deus e da Fé, dos ritos que simbolizam a verdadeira doutrina... não passa de uma fórmula anarquista (destacado no original), apesar de todo o mel que destila... Com um cristianismo dessa espécie, não se pode governar, nem fazer a guerra – não há razões para se elevar a Deus. Seu único efeito será a precipitação da Revolução Universal. É ela criminosa por sua mansuetude”... (“Nos nouveaux Chrétiens”). V. também São Pio X, “Carta sobre o Sillon”: “O Cristo é tão forte quanto suave... Ele repreendeu, ameaçou, maldisse... A bondade incondicional de Seu coração etc.”
  19. 19. “O poder executivo é necessariamente monárquico. Faz-se sempre necessário o comando de um homem, já que a ação se não pode regular antes do fato. A ação é como uma batalha, cada desvio no caminho requer uma decisão” (o filósofo radical Alain, “Politique”).
  20. 20. Por exemplo: A Lorena e a Córsega sob Luís XV. Acerca disso, v. “Le siècle de Louis XV”, de Pierre Gaxotte. De modo geral a análise política não tem como auferir qualquer resultado se acompanhada da desmistificação paralela no que respeita à história da França. Deve-se ler por ex. “La Révolution française” de Pierre Gaxotte (Livre de poche), as brochuras de Funck-Brentano etc.
  21. 21. No sentido de habitantes de burgos. Não se trata da burguesia em sentido marxista!
  22. 22. “Enquête sur la Monarchie” ed. 1921, pp. 402-403.
  23. 23. E não-totalitária. Quando as pessoas estarão aptas a fazer distinções elementares?
  24. 24. V. “Mes idées politiques” (Grasset) pp. L, VIII, LIX, LX, LXIV, LXXXIV, 220 e 228.
  25. 25. Ibid., pp. 241-246.
  26. 26. “L’Avenir de l’intelligence”, final.
  27. 27. Tal afirmação se mostrou uma feliz inconseqüência. Pouco tempo antes da morte, dizia Maurras ao padre Cormier (v. mais à frente) que durante todos os dias de sua vida fazia uma curta oração à Santa Virgem. Um “ateu” extraordinário, de fato. Tratava-se mais de uma dúvida insuperável que propriamente uma negação, dizia ele.
  28. 28. Era Napoleão que dizia isso, e e não outra pessoa: “Meus soldados e meus padres”. Deve-se dizer que estes, sob o Segundo e o Primeiro Impérios, cumpriram seu papel com perfeito zelo, confundido o respeito ao poder, conforme a pregação de São Paulo, com servilismo. Não é um fato inédito na história da Igreja, mas não faltava independência à Igreja do Antigo Regime em relação ao princípes.
  29. 29. Remeta-se aos dois livros do cônego Cormier, diretor-geral do grande Seminário de Tours, que assistiu Maurras durante muito tempo: “Mês entretiens de prêtre avec Ch. Maurras” e “La pensée religieuse de Ch. Maurras” (Plon).
AdaptiveThemes