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XIX. O marxismo-leninismo

XIX

O marxismo-leninismo

Já que queremos consagrar esta exposição ao conteúdo da doutrina somente, para discuti-la, remetemos às obras clássicas no que tange à história, biografia etc.

A fim de evitar equívocos, teremos de circunscrever bem o objeto de estudo:

  1. Contrariamente a um erro bem comum, até mesmo entre “intelectuais”, o marxismo não é simplesmente a solução prática do problema econômico- social: “O marxismo”, disse um de seus comentadores autorizados, “é toda uma concepção de mundo” (Plekhanov). É a “Weltanschauung”, que contém uma teoria do conhecimento, uma filosofia da história, uma moral, uma estética. Isso é de importância capital, pois é palmar o erro daqueles que querem tomar o marxismo apenas por um ou outro ponto de vista que mais lhe agrada (conferindo-lhe sentido e relevo...), rejeitando o resto.

  2. Muitos autores e escolas dizem-se mais ou menos ligados ao marxismo. Em particular alguns grupos comunistas. Todavia pensamos como Max Scheler: “os comunistas (são) os mais puros representantes do verdadeiro Marx” (“A idéia de paz e de pacifismo”); com algumas reservas, conforme se verá adiante, o objeto principal da análise será o comunismo.

  3. Um espírito contraditor poderia objetar que todos os intelectuais comunistas ocidentais de certa independência abandonaram o Partido nestes últimos anos. Isso é certíssimo; estudamos outrora a obra desses dissidentes (trabalhos práticos 1959-1960)1.

    Enfim o grande bloco sociológico que compõe o marxismo-leninismo... tradicional nos é muito mais instigante que os intelectuais que o abandonam um após o outro (pouco importando o perigo que representam à coesão interna do “Partido”). Visaremos sobretudo ao marxismo-leninismo ortodoxo (diríamos: stalinista, pois mesmo a morte do “genial líder” não lhe modificou em nada), ao de Lefebvre (primeira fase)2 e ao do deveras eufórico e triunfante Roger Garaudy, interprete oficial da boa nova3.

  4. Último problema de delimitação da axiomática: a U.R.S.S. é realmente marxista ou não? Muitos o negam, desde os trotskistas até Lefebvre (segunda fase), Fougeyrollas etc., que só a vêem como um tipo de cesarismo burocrático, de totalitarismo policial que traiu o autêntico espírito revolucionário. Sem querer nos imiscuir em querelas familiares, limitar-nos-emos a destacar, como Chambre4, que a ideologia soviética permanece em tudo marxista, sem tirar nem pôr.

    Em particular ela continua a professar o coletivismo, a crer na inevitabilidade da luta de classes5 e, acima de tudo, a apoiar a concepção radicalmente atéia e materialista da história. Logo, é falso dizer, como alguns anticomunistas pouco argutos, que a U.R.S.S. não se inspira em uma doutrina e julgar o bolchevismo apenas em termos de estratégia e tática, como num jogo de xadrez. Khrouchtchev dizia, poucos anos atrás: “Vencemos o Ocidente com uma arma terrificante, invencível, cujo poder não imaginais – nossas idéias!” (O desconhecimento desse fator diminui o valor de obras ademais lúcidas e interessantes como as de Burnham, por ex., “A dominação mundial”).

A DOUTRINA MARXISTA. 1. Exposição:

Dedicamos este bloco a autores como Marx, Engels e Lênin, além dos pensadores de segunda ordem (Plekhanov etc.). Engels desempenhou um papel fundamental na gênese do “marxismo oficial”

Objetaram-nos em um jornal comunista por dizer que dois terços do que em certos meios chamamos “marxismo” vinham de Engels; mas essa boutade é, em grande parte, verdade, como se vê, por ex., com a expressão “materialismo dialético”, que é dele, e não de Marx...

Já Lênin, ainda que achemos seu pensamento filosófico pobre e frustrante[fn]“Como todos sabem, Lênin era um teórico lastimável... É evidente também que os conhecimentos filosóficos de Lênin eram muito bons para fazer as pessoas boas rirem... ‘Materialismo e empiriocentrismo’ será eternamente um modelo de estupidez extrema” (Bukarine, pensador bonchevista famoso, mas fusilado por ocasião dos “expurgos’ dos anos 30). – como o é - é um dos clássicos fundamentais do marxismo oficial, e qualquer um que se afaste dele é reputado herético pelo Partido e seus doutores autorizados.

A. As fontes do marxismo-leninismo

Nenhuma doutrina nasce do nada, e o marxismo não mais que as outras. A análise breve de suas raízes nos permitirá situá-lo.

Antes do mais, discriminemos:

  1. O socialismo utópico (Fourrier, Saint-Simon etc.). Parecerá curioso aos que se habituaram a ouvir sempre o marxismo como “socialismo científico”, (“cientificista” seria melhor...); mas, como veremos, isso são pretensões que se encontram em Marx e Engels[fn]“Engels mal lera os filósofos contemporâneos, só tinha idéias gerais mui vagas sobre o tarbalho da ciência moderna” (G. Sorel: “Há utopia no marximo?”). Conhecemos no entanto a benevolência de Sorel em favor dessa corrente de pensamento.. A idéia da sociedade perfeitamente racionalizada e do universo inteiramente domesticado pelo homem é de fato um dos temas favoritos do socialismo utópico.

  2. O darwinismo: Marx e Engels são entusiastas da teoria da concorrência vital e da luta pela vida, (é típico que em nosso dias os defensores mais afetos à forma darwiniana do evolucionismo sejam precisamente marxistas, como Prenant).

  3. O hegelianismo: de onde Marx toma o racionalismo e o método dialético (tese, antítese, síntese) aplicado tanto à natureza quanto à história. Enquanto Hegel era idealista, Marx “traz a dialética de volta a terra” (em suas palavras, “com a cabeça voltada para baixo”), fazendo-a trabalhar com os fatos sociais e econômicos. Não esquecer que a formação de Marx é filosófica, que a informação econômico-social vem depois, encaixando-se no molde de um pensamento já estabelecido.

Notem: podemos compreender que o enxerto, ou a simbiose, entre darwinismo e hegelianismo - que são a seu turno (sem nada deverem um ao outro: Hegel, diferente do que se imagina, era aficionado em biologia!) teorias da luta que concebem a existência como um perpétuo combate, conduzindo forçosamente à guerra e destruição - dá ao marxismo seu aspecto marcial e dramático, que vê a relação entre classes como luta de extermínio (abstração feita às concepções propriamente economico-sociais sobre o capitalismo etc.).

Em Lênin tal aspecto está ainda mais acentuado pela leitura embevecida que costumava fazer dos teóricos alemães da guerra total (sobretudo Clausewitz).

  1. O ateísmo de Feuerbach e a teoria da alienação, pela qual o homem despoja-se da autonomia para regozijar-se com ficções, tal como a idéia de Deus, que subjuga e esteriliza seus esforços. Veremos mais a frente que o ateísmo é a raiz profunda do marxismo, e não um apêndice qualquer que um piedoso cristão progressista consideraria o cerne da questão...

  2. A economia política liberal clássica (Bastiat, Ricardo), sobre a qual construirá "O Capital" e, de forma geral, a obra econômico-social - para criticá-la, certamente -, compartilhando com esta a idéia importantíssima (e falaz) do homem como puro produtor e consumidor (“homo oeconomicus”): exagere um pouco essa noção, e aí está o materialismo histórico...

    Convém notar que o contexto econômico do marxismo é “datado”, pois constituído pelo que o tecnólogo L. Mumford6  chama de era “paleotécnica”, a do primeiro impulso do capitalismo, com a maquina de vapor etc., quadro que se modificara tão profundamente que os economistas marxistas conseguem a custo aplicar as visões do mestre à realidade atual

    B. O conteúdo do marxismo-leninismo

    Plano
    Atitude diante do Universo (teoria e prática): o materialismo dialético. A evolução da humanidade (base, superestrutura e ação recíproca). Evolução social e tomada de poder. Luta de classes (Revolução): ditadura do proletariado e sociedade sem classes. Apologia do pensamento marxista: novo humanismo.

    1. Atitude diante do Universo (teoria e prática): O materialismo dialético

    De forma geral pode-se dizer que até à Renascença há a primazia dos valores contemplativos (conhecimento desinteressado e amor aos valores), tanto entre os pensadores gregos como entre os da Idade Média católica. Nos séculos XVI e XVII prevalece a atitude voltada à ação utilitária e à dominação da natureza (G. Bacon, Descartes etc.), que culminará no século XVIII (enciclopedistas) e nos séculos XIX e XX. Desse ponto de vista, o capitalismo tecnocrático e o bolchevismo são duas faces da mesma “moeda”.

Isso se exprime à luz meridiana no “manifesto comunista”, onde se fala que, se até aqui os homens procuraram conhecer o mundo, devemos agora nos concentrar em modificá-lo (tal como disse um autor traduzido há pouco tempo, “o marxismo é a tentativa de refazer a criação”. Essa fórmula ainda vai dar pano p’ra manga!...). Como o marxismo rejeita o utilitarismo e o pragmatismo “estritos” ou pequeno-burguês, ele professa a unidade da teoria e da prática, um de seus leitmotives (não há ação sem doutrina, nem doutrina sem ação, seja esta política ou técnica).

Dessa visão militante, só se admitem duas teorias do conhecimento: o idealismo, cujo modelo é o pensamento de Berkeley e a idéia principal é a de que a consciência faz o universo, o pensamento cria a natureza; e o materialismo, que professa o inverso: o pensamento é atributo da matéria, logo a natureza e a história concreta o determinam – quem não é materialista, é idealista.

Ademais há vários tipos de materialismo, de valores desiguais: um dos mais divulgados até hoje é o “mecanicista”, que explica tudo – inclusive a evolução, quando a professa – por fatores elementares, estáticos, dados uma vez e para sempre. Ignora a dialética da natureza e sobretudo explica o comportamento humano e sua história através do fator biológico, conduzindo mais das vezes à concepção quase fatalista de destino (hereditariedade etc.)7.

Ao contrário o marxismo-leninismo toma de Hegel a idéia da dialética ternária ou trinitária da natureza e principalmente destaca o fator econônico-social acima do biológico (materialismo econômico). Nessa perspectiva “mobilista” não se admite nenhuma verdade imutável. Tudo se transforma, tudo evolui: “Até nossas idéias e categorias são tão eternas quanto as relações que exprimem. São produtos históricos e transitórios”. (Marx, “A miséria da filosofia’).

2. A evolução da humanidade: base, superestrutura e ação recíproca, aplicação à religião

A base (ou infra-estrutura) é o conjunto de relações de ordem econômica e social concretas. A superestrutura é... todo o resto (a palavra “ideologia” é aqui empregada com freqüência, mas possui algo de pejorativo que a palavra “superestrutura” não contém necessariamente). Vamos nos limitar aqui a um problema clássico e importante: Marx com sua escola professaram ou não que a base dá a explicação cabal da superestrutura? Alguns intérpretes tentaram – e continuam tentando – edulcorar o pensamento do mestre, pretendendo dizer que ele apenas quis destacar o fator econômico, desconhecido do idealismo burguês, e não reduzir toda a causalidade histórica a ele. Assim o marxismo seria tão-só uma reação de bom senso e lição de realismo (cf. certos socialistas e progressistas cristãos).

- Para nós a reposta é clara: o marxismo clássico ensina mesmo a causalidade total da base. “A estrutura econômica da sociedade é sempre o fundamento real por que toda a superestrutura das instituições jurídicas, políticas, das concepções religiosas, filosóficas e outras8 , em cada época histórica, deve-se explicar em ultima instância” (Engels, em “O Anti- Dühring”). O assunto poderia ser ilustrado por numerosas citações de Marx, Engels e Lênin.

- Mas não vem daí que, uma vez nascida da base, a superestrutura não tenha eficácia nenhuma e se reduza a puro epifenômeno – como em certas formas mecanicistas de materialismo:

Os marxistas vêm-nos martelar aos ouvidos a noção de ação recíproca, cada vez que rejeitamos o materialismo histórico: a superestrutura reage com a base, modificando-a por sua vez. (Limitar-se a citar a “influência das idéias” para criticar o marxismo é muito pouco, seja ela a Reforma ou a Revolução Francesa, por ex.). Daremos alguns escorços sobre a aplicação [do marxismo] à religião.

A religião é uma superestrutura (a que Marx e seus continuadores mais detestavam, no fim das contas) que se explica por duas razões em conjunto.

  1. a)  O medo do homem em face das forças da natureza (idéia que vem de Lucrécio até a Voltaire. Demais há em Marx, e mais ainda em Engels, uma atmosfera “século XVIII” que caraterística de intérpretes como Naville) – tomado de pânico, o homem inventa seres misteriosos que possam protegê-lo.

  2. b)  O proletário explorado e infeliz imagina falsas compensações (vida futura, Providência etc;), que desempenham papel de narcótico (“A religião é o ópio do povo’), anestesiando em parte o sofrimento, mas neutralizando por sua vez a ação, ao encobrir os verdadeiros problemas (exploração social etc.) que deveria resolver de outro modo, e não pela mistificação religiosa. A religião é má por essência, o mal absoluto, e deve ser extirpada. Sem dúvida ela desapareceria junto com o capitalismo, já que é com ele uma só superestrutura, mas suas raízes são profundas, então deve-se atacá-la em si mesma, através do plano ideológico e, por fim, da perseguição, após a tomada do poder.

    (V. na continuação, sobretudo a discussão acerca do marxismo e cristianismo).

    3. Evolução social e tomada de poder:
    luta de classes, revolução, ditadura do proletariado e sociedade sem classes.

    Se o fator econômico constitui o motor essencial da história, qual fator antagônico oporá necessariamente os homens entre si? Por certo não as puras idéias, nem a raça, mas as diferenças de classe social (definidas apenas em termos de propriedade etc.).

    De onde o outro pilar do marxismo: “Toda a história da sociedade humana até hoje se explica pela luta de classes” (Manifesto Comunista). “Toda”, quer se trate das mudanças de regime político, da evolução da filosofia, da criação artística, das controvérsias teológicas... uma só é a fonte capital.

    A dialética hegeliana do mestre e do escravo, que arriscava permanecer como apenas formal, recebe um conteúdo concreto. Em eterno confronto, o proletariado e a burguesia encarnam a tese e a antítese9. Quando o jogo de contradições demolir o edifício capitalista, i. é, quando se der a revolução, soará a hora da ditadura do proletariado (i. é, a hora do partido comunista, que é a suposta encarnação deste...). Após a fase de luta e coerção (Lênin explana sobre o “extermínio do adversário” em diversos lugares) e de “construção do socialismo”, surgirá a sociedade sem classes, uma espécie de paraíso terrestre, de onde todas as contradições serão banidas (a inveja, a angústia, a raiva, as divergências de toda ordem que se baseiem no suporte econômico que no tempo vindouro não existirá). A política marxista-leninista, rude e militar, desfecha em uma visão idílica, bem próxima à dos anarquistas libertários, com a desaparição do Estado, órgão opressor...

Lembrança importante:

Devemos examinar um pouco como se realizará o processo. Antes de tudo, destaquemos:

  1. a)  que em princípio o marxismo-leninismo é hostil às agitações minoritárias de tipo anarquista, e só confia na ação em massa10;

  2. b)  que recusa de igual modo o “reformismo” social-democrata ocidental, bom para desviar as massas dos verdadeiros objetivos e fazer o jogo da burguesia. Quer dizer, ele só concorda com o valor da conquista parlamentar e legal do poder se for mais fácil e menos onerosa que a luta à mão armada. Claro, colher o fruto maduro é preferível às rusgas de uma guerra civil encarniçada, mas somente por razões utilitárias, não por princípio moral... já que

  3. c)  o marxismo-leninismo não é de forma alguma um pacifismo, apesar da hábil utilização que faz dos sentimentos por natureza pacíficos (fundados no medo físico e no horror moral do massacre) das pessoas. Poderíamos transcrever vários textos característicos disso. Remontemos à obra de Zinoviev e Lênin, “O socialismo e a guerra”. Ali lemos em particular: “O pacifismo e a palavra de ordem abstrata são uma das formas de logro da classe operária. Sob o regime capitalista e imperialista, as guerras são inevitáveis. Justificamos todas as guerras revolucionárias que de 1789 a 1871 se fizeram com o fito de se libertar do opressor da nação e do jugo feudal, ou ainda, que se provaram necessárias na luta do proletariado contra a burguesia. O marxismo não é um pacifismo... A palavra de ordem não é desarmamento universal, mas desarmamento da burguesia e armamento do proletariado”.

    Clausewitz (a quem Lênin admirou, leu... e anotou) definira a guerra como “a continuação da política por outros meios”; o marechal Chapochnikov (em “O espírito do exército”) encareceu a citação, acrescentando: “a paz é também a continuação da luta por meios diferentes”11 .

    4. Apologia da civilização marxista: um novo humanismo.

Assistimos a uma espécie de eclosão da vontade de poder marxista: a nós, o cantante amanhã; a nós, a domesticação total do planeta. Como falamos no começo, voltamos a euforia do socialismo utópico do começo do século XIX. As teorias biológicas são escolhidas em função da possível utilização política12: se há hereditariedade dos caracteres adquiridos (o que a quase totalidade dos biólogos atuais negam), poderemos crer em um tipo novo de super-humanidade. A arte é canalizada, domesticada (até mesmo a música: Chostakovitch e Prokofiev farão discretas autocríticas, rejeitando seu “formalismo” e declarando querer, para o futuro, seguir o “realismo socialista”). Descobertas cientificas prestigiosas, que nada devem à dialética marxista-leninista, mas sim à organização metódica da pesquisa, às custas do sacrifício de outros objetivos mais humildes – como a elevação do nível de vida dos cidadãos -... são exaltadas. Encoraja-se a difusão da “ficção- científica” (de tipo otimista, já que ela possui também aspecto catastrófico, cultivado por alguns autores americanos ou europeus). Até aonde irá o novo homem marxista? e mesmo seus adversários estarão convictos do triunfo inelutável, conduzido pelo “sentido da História”13 .

Convém examinar de perto tal síntese, de aparência majestosa, para se dar conta do número incrível de contradições, de asserções gratuitas, de extrapolações irracionais e de sofismas lógicos que ela contêm.

A DOUTRINA MARXISTA-LENINISTA: 2. Discussão

Para tal, seguiremos aqui o mesmo plano da exposição.

1. Para começar, teríamos muito a dizer sobre a atitude tecnicista e utilitária que o marxismo-leninismo adota – entre outras. Muitos autores de diferentes visões vêem aí a morte da cultura, uma concepção destruidora da verdadeira civilização14. Contudo vamos direto ao que é mais especificamente marxista-leninista.

- a redução de todas as doutrinas do conhecimento ao idealismo e ao materialismo é inadmissível (convém notar que ninguém a aceita, a não ser a escola marxista que, quando versa da nomenclatura, tem contra si a unanimidade das outras filosofias). O idealismo opõe-se ao realismo (v. “Vocabulaire technique et critique de la Philosophie”, de Lalande, obra universitária que é um clássico), que professa que o real não remonta ao conhecimento que temos dele, mas que possui existência própria. Além disso, o realismo pode-se dividir em materialismo e espiritualismo. O primeiro professa que a matéria é o que só existe; o segundo admite a existência do mundo material, mas também a existência de fatores imateriais (a alma, Deus). Daí não se reduzir ao idealismo, diferindo-lhe em muito:

a) em primeiro lugar, sustenta a existência do mundo exterior, o qual o idealismo remonta ao pensamento;

b) e ainda, possui uma concepção totalmente diferente do idealismo, no que tange às realidades espirituais (substancialidade da alma, transcendência de Deus etc.)15.

Há bom senso em se classificar sob o mesmo rótulo a doutrina de Aristóteles, que repousa sobre a afirmação da realidade do mundo, e a de Berkeley, que repousa sobre sua negação? Em verdade, a concepção marxista ressente-se, de forma deplorável, de seu caráter acima de tudo polêmico e prático, de modo que, se alguém não é comunista ou o que o valha, é suspeito de fascismo, assim como se não é materialista, é idealista16 .

- Tratemos pois da noção de materialismo dialético, pela qual fazem tão grande arruído. Dizem que ela não é apenas uma doutrina entre outras, mas a mesma ciência. Longe de ser um dogmatismo, é o método de saber enquanto se faz. Sua natureza difere da do materialismo mecanicista. Cada uma de suas asserções pede-nos que a observemos de perto. Nós constatamos que:

  1. a)  se a palavra “dogmatismo” for tomada no sentido original do Vocabulário de Lalande (crença na existência de uma certeza objetiva), o marxismo não é tão-só dogmático, mas hiperdogmático, apresentando-se sempre como a única doutrina que vale, tratando as demais com grande severidade.

    Dizer que o marxismo é apenas um método, e não uma doutrina, é proferir uma fórmula sem sentido: o método é o modo por que a doutrina se constrói, e a doutrina é o conteúdo do método. Separá-los é operar uma daquelas abstrações “formalistas” que os marxistas perscrutam exatamente... nas outras [doutrinas].

    - Uma das contradições essenciais ao marxismo é a oposição entre a concepção “mobilista”e relativista da verdade que ele professa (para uso externo nos outros, pelo menos) e a intransigência absoluta com a qual sustenta que sua visão lhe permite julgar toda a História, como se do alto de um mirante. Após “relativizar” com bravura as noções da filosofia clássica, Lênin declara candidamente, ao falar da sua proposição:

    “Não podemos nos afastar dessa doutrina, forjada em aço maciço, sem que nos afastemos da Verdade objetiva”. É o que os ingleses chamavam de “self- refutation” (Platão e Aristóteles já a utilizavam contra os sofistas gregos...).

  2. b)  o materialismo dialético não difere – longe disso – do materialismo “vulgar” ou mecanicismo, por mais que nos digam o contrário. Realmente ainda que exista fatores que lhe são próprios (de um lado o fator hegeliano, do outro o econômico), ele aceita a idéia fundamental de todo materialismo, a saber, a redução do pensamento ao movimento (material). Quando Marx escreve: “A idéia é o mundo material transposto e traduzido no cérebro humano”; quando Engels declara: “O pensamento e a consciência são produtos do cérebro humano” (Anti-Dühring), e quando Lênin diz, ao fazer o elogio de Haeckel: “A consciência e o pensamento são produtos de um órgão material, corporal – o cérebro” (“Materialismo e Empiriocriticismo”), perguntamo-nos se estamos muito distantes do mecanicismo materialista de d’Holbach e Le Dantec. Isso é tão manifesto que profundos conhecedores do marxismo – e que além disso lhe são favoráveis, como Naville – deleitaram-se em aproximar tanto quanto podiam o materialismo dialético do materialismo clássico17 .

c) O materialismo não é em absoluto uma ciência, mas sim uma metafísica a sua maneira.

A ciência dá-nos a conhecer as relações, os laços entre fenômenos, mas não se refere ao “em si” das coisas. Por exemplo identificamos algumas relações entre a atividade mental e a vida orgânica. Mas se afirmamos a identidade, damos um salto injustificado: passamos da ordem da constatação positiva ao da interpretação sistemática. Trata-se de filosofia, ou até mesmo de metafísica, em sentido consagrado. O materialismo nasceu muito antes do desenvolvimento da ciência moderna – é uma atitude tão velha quanto a filosofia: muitos séculos antes de nossa era, antes da física, antes da biologia científica, já existiam materialistas. Trata-se apenas de um dos modos possíveis (nós o reputamos por falso) de interpretar as relações do pensamento e do corpo. Na época moderna, contrariamente a um erro corrente, não são os cientistas que professam o materialismo, mas os filósofos (como Marx), os vulgarizadores e os homens de ação revolucionários. Em particular não há relação entre as descobertas efetuadas pelos cientistas comunistas e a filosofia marxista-leninista. Fora da U.R.S.S., poucos cientistas emprestaram-lhe o renome; a maioria era refratária. Quando se lê algumas publicações comunistas, vemos que o marxismo não intervém em nada na pesquisa; o que há são apenas citações mais ou menos copiosas de Marx, Engels e Lênin (as de Stalin, tão numerosas há poucos anos, desapareceram!...), mas o raciocínio científico em si mesmo não é afetado18.

2. Base e superestrutura: filosofia e religião

Os marxista-leninistas fazem em uníssono a profissão de fé: a superestrutura explica-se pela base – eis o dogma de que se não pode duvidar (nem ademais se pode provar, no sentido rigoroso do termo...). Contudo no momento de aplicar o prestigioso princípio, dividem-se em duas correntes em tudo divergentes: mas há quem jogue corajosamente o jogo até às últimas conseqüências. Vão explicar a guerra de 1914 por tal ou qual fator monetário, pelas condições da colheita na Europa Central ou Oriental etc.. Tornam-se mais pitorescos ainda quando se trata de filosofia: Boukarin, que fora por longo tempo o cabeça do marxismo-leninismo oficial, vaticinava que a teoria aristotélica do ato e da potência, da matéria e da forma, é a projeção ideológica da escravidão antiga19, e que os conceitos de São Tomás sobre os anjos, uma tradução sublimada do estado feudal. Do mesmo modo Mougin (morto de forma prematura, mas que era uma das esperanças do partido comunista) explicava o renascimento do tomismo pela influência do Comité des Forges, assustado com a escalada do marxismo, e a filosofia existencialista de Heidegger pelo Nazismo... Tais acrobacias intelectuais (para dizer o mínimo!...) trazem em seu seio a própria refutação; os marxistas mais inteligentes ou mais honestos rejeitam-nas totalmente.

Mas então, o que fazem? Como os mais “símplices”, dizem a profissão de fé, mas previnem-se de serem muito fiéis a ela e de traçar uma perpendicular ligando a doutrina ao dado. De tal forma insistem na consistência das superestruturas e seu dinamismo próprio que chegam a dizer (às vezes) coisas até utilizáveis, mas que não pertencem ao marxismo-leninismo. De modo que o famoso princípio da causalidade da base é prodigioso, à condição de não nos servirmos dele (como alguns utensílios famosos que são vendidos no mercado, mas que quebram desde que os utilizemos a sério).

- Incapaz de explicar a filosofia enquanto tal, o marxismo-leninismo se equivoca mais ainda ao tratar da religião

O medo só possui um papel importante nas formas inferiores da vida religiosa, mas não em suas formas superiores (v. o Evangelho). Para além disso ainda há o fator intelectual e o afetivo superior: um etnologista moderno (que é incréu) diz que “as religiões nascem porque o homem é um animal que se questiona”. Todas as religiões são uma tentativa de explicar o Universo e o destino humano. (Comte, neste ponto, mesmo equivocado quanto ao valor da religião, entendera-a bem ao plano psicológico). Além do mais em uma religião digna desse nome, existe o apelo constante ao aperfeiçoamento moral, à purificação, à perfeição, onde não há egoísmo e interesse (“O cristianismo, diz Renan, é a mais característica e religiosa dentre as religiões”). Ao versar sobre o papel opressor da religião ao plano social, constata-se facilmente que o marxismo- leninismo confunde aqui duas coisas manifestamente diferentes: a essência, o “Wessen” do fato religioso, sua estrutura profunda e a utilização que lhe fazemos em algumas circunstâncias históricas particulares, que não comprometem o princípio20 .

Mais à frente consagramos um parágrafo à parte para saber se podemos, de algum modo, conciliar cristianismo e marxismo-leninismo: não cabe discutir o problema aqui.

3. Evolução histórica etc..

Ainda aqui tratamos do problema base-superestrutura, mas sob outro enfoque: o da relação entre o fator econômico e o fator político. É uma questão fundamental para a correta avaliação do marxismo, pois este é um dos pontos em que o reputamos mais daninho. Daí o porquê deste parágrafo.

Fator político e fator econômico

Em boa ortodoxia marxista-leninista, entende-se as instituições (e os ocorrências) políticas como uma superestrutura cuja base é o fator econômico.

Garantimos que essa opinião é falsa, e por vários motivos:

- De forma geral o marxismo-leninismo confere a si mesmo com muita facilidade um papel vantajoso, admostando ao idealismo burguês que o homem não vive apenas de belas abstrações, mas que deve comer, vestir, morar etc. Segue-se daí que o fator econômico tenha de fato o valor explicativo que lhe conferem? Se tivéssemos tempo, retomaríamos o esquema aristotélico sobre a causalidade multiforme (material, formal, eficiente, final)21 . O fator econômico tem um papel concreto no plano da causalidade material. Não é subestimá-lo compará-lo à uma matéria-prima, já que sem ela nada se faria! Mas explicar a história humana por meio do condicionamento material é querer “explicar” uma catedral gótica dizendo “é feita de pedra”, ou um quadro de Velasquez dizendo que tem cromo ou cobalto espalhado pela tela...

- Um historiador simpático ao jacobinismo (Mathiez) disse a poucas palavras atrás que a miséria engendra motins, mas não a revolução. A idéia é retomada por pessoas de orietanção bem diferente quanto Donoso Cortês (v. lição XV-2) e Camus... Existem pessoas famintas que são incapazes de reagir, e ambientes de alto nível social que são comunistas22 . Lênin sabia disso muito bem, já que ele o escreveu citando Kantzutsky, considerando como seu o pensamento deste: “A consciência socialista é um elemento importado desde fora para a luta de classe do proletariado, não algo que surgiu espontaneamente... Não haveria necessidade (de introduzir no proletariado a consciência de sua situação) se essa consciência emanasse naturalmente da luta de classes”23. A Revolução Francesa não teria acontecido sem a ação das Société de Pensée24: o Antigo Regime já atravessara crises de igual gravidade no tempo de Etienne Marcel ou das Frondas, p. ex., mas a doutrina, fator específico e decisivo, não estava presente, o que salvara então as instituições.

Esboçaremos uma crítica tão exata quanto possível, tomando como explo as origens da humanidade e a época atual.

Marx como Rousseau (apesar de suas pretenções “científicas”) se apraz em pensar sobre a origem da sociedade – um método perigoso em que a hipótese esbarra quase sempre na gratuidade. Acatemos contudo o procedimento, que diz mais ou menos isso: os primeiros homens sabiam como viver, comer, se defender contra os vários perigos – eis o fator econômico enquanto raiz. O restante (organização política, religião etc.) veio na esteira disso, condicionado por problemas de subsistência material.

Pois bem, negamos peremptoriamente o valor do raciocínio. Os tais primeiros homens para subsistir haviam de patrocinar mais ou menos algum tipo de organização: comando, divisão das tarefas etc., i. é, uma estrutura política constituída sob um certo panorama, uma moldura que tornasse a economia possível e viável.

- Passemos à época atual: um autor marxista, ironizando o pensamento maurrasiano em 1930, escrevia: “que significa o ‘político de outrora’25 no momento em que o ministério é derrubado sob a pressão dos grupos financeiros?” A resposta é fácil: “A república parlamentar é um regime fraco, em que os grupos de pressão manobram a pretensa ‘opinião’, por isso o governo cai tão facilmente: experimentem derrubar um chefe de estado autoritário por esses meios! É aqui que a estrutura política conserva seu papel essencial...”

-Isso se aplica à vida ordinária das sociedades, que chamam (por aproximação) de tempo de paz. Mas também o é de guerras.

- Muitos são marxistas sem o saber: antes de tudo porque aceitam sem discussão o vocabulário e a posição marxista dos problemas, com a falsa esperança de criticá-los na seqüência (com timidez) em suas conclusões26. Particularmente elegem como prova de inteligência a repetição passiva de que “todas as guerras têm causas econômicas”, a explicação (?) dos fatos tão- somente em função da borracha, do petróleo etc. Ora tudo isso são pseudo-evidências, e de fato uma carência de clarividência e profundidade: um psiquiatra e caracteriólogo austríaco, Alfred Adler, criticando o papel dado por Freud à sexualidade, demonstra que para além da célebre “libido” existe a tendência à afirmação do eu, uma como equivalente da vontade de potência. Sem negar todavia as observações de Freud, pode-se dar a elas uma interpretação diferente. É possível proceder assim na relação entre o marxismo e o fator econômico27. Há entre as nações como entre indivíduos rivalidades de prestígio, ciúmes, ressentimetos (mais adiante falaremos sobre a especificidade do fator nacional em relação aos outros elementos constitutivos das sociedades). Nesse caminho para a glória, para a supremacia sociológica, cada qual busca adquirir o maior número possível de aportes materiais que lhe permitam manifestar o poder: daí a corrida ao comércio maritmo, aos poços de petróleo etc., que são meios de que se serve a vontade de poder, e de jeito nenhum a causa suprema dos comportamentos grupais28.

- É impossível privilegiar o fator econômico em detrimento do político, como faz o marxismo: os doutores do maxismo-leninismo o reconhecem de certa forma pela maneira efetiva de seu raciocínio: Marx, no “Dezoito Brumário de Luís Bonaparte” (sobre o golpe de estado de 2 de dezembro) e nos escritos (editados tardiamente) sobre a Rússia e sua história, concentra-se em análises próprias e especificamente políticas. O comportamento efetivo do partido comunista no mundo inteiro não é uma homenagem à primazia do político, já que busca em toda a parte assenhorar-se do aparelho governamental e, segundo a bela expressão de um especialista (de formação marxista), transformar “a economia política segundo a política econômica”?.

- O marxismo-leninismo passa totalmente ao largo do fator nacional, subestimando-lhe sempre o alcance e vendo-lhe como uma superestrutura. Numerosos autores, que nada têm em cumum, sublinharam o caráter falso dessa posição, desde o ateu e livre-pensador Bertrand Russel29  até ao ex- comunista Arthur Koestler30, passando pelo tecnólogo Lewis Mumford e o historiador de esquerda Bourniquel31. Citemos ao acaso: “As lutas nacionais se contradizem totalmente com as lutas de classes” [Mumford]32

 “Onde o nacionalismo contradicta a ideologia social, o nacionalismo sai vitorioso: a Grécia fascista de Metaxas combateu o invasor fascista italiano etc.”33.

A luta de classes:

Que pensar sobre o tema da luta de classes, importantíssimo para o marxismo-leninismo? Temos antes de fazer uma distinção fundamental. A nosso ver existem dois erros simétricos: um é o do consevadorismo liberal e “burguês” (pelo qual não sentimos, é bom repetir, nenhuma simpatia), segundo o qual uma harmonia imaculada reinaria entre as classes sociais, abstração feita dos inoportunos agitadores que vivem artificiosamente de atiçar conflitos; o outro, inspirado em Darwin, Hegel e até Clausewitz, só consegue ver as relações humanas sob o ângulo do conflito – é a visão de Marx, Engels e Lênin. Nossa concepção é outra: cremos na existência da natureza humana. Pensamos, em conseqüência, que a sociedade deve ser civilizada, i. é, diferenciada, i. é, hierarquizada, i. é, não-igualitária34. Existe a hierarquia social natural, correspondente às necessidades fundamentais do corpo social. Ela pode emperrar, degenerar, pode dar lugar ao abuso e às injustiças – que se hão de combater e corrigir – mas não é em essência má, perversa, viciada: mesmo que o capitalismo liberal fosse mau (como é), a distinção entre escalões sociais não está nele, como não está nele fatalmente a fonte de ódio e de conflitos que só se resolveria com o “extermínio do adversário”. Existem lutas entre classes, hic et nunc, mas não A luta de classes, concebida em uma perspectiva que lembra a idéia dos cátaros e demais maniqueístas sobre o antagonismo do Deus do Bem contra o Deus do Mal...35

MARXISMO E CRISTIANISMO

Não podemos terminar este estudo sem tratar de um problema candente nos dias de hoje. Como situar a relação entre cristianismo e marxismo? Mais exatamente o cristão pode colaborar com os marxistas na luta político-social?

Já mencionamos que o ateísmo não é de forma alguma um apêndice ou elemento adventício no marxismo, mas antes uma das idéias principais, até mesmo a inspiração profunda do sistema. Isso é dito de forma claríssima pelos intérpretes mais que autorizados do pensamento marxista, como A. Cornu etc.. Pode-se mesmo dizer que a crítica marxista da religião não é tão-somente um corolário da crítica do liberalismo econômico contida em “O Capital” (como acreditam tolamente muitos cristãos de nosso país), mas é justamente o contrário que é verdadeiro: o esquema da alienação, cuja essência está em Feuerbach e que se aplica às relações entre o homem e Deus, é por sua vez aplicado por Marx à sociedade capitalista.

Falávamos do problema atual, a um tempo atrás, com uma alta personalidade romana. Esta nos declarou: “Não consigo entender o comportamento de certos católicos franceses, que sempre tentam conservar-se em perpétuo contato com o comunismo: a oposição total contudo é mais que manifesta, e em todos os níveis as doutrinas são inteiramente antagonistas e inconciliáveis uma com a outra. A Igreja já interveio diversas vezes para dizer que se deve pensar nisso, que o cristão católico deveria encerrar o debate. Enfim há a prova dos fatos: em todo lugar onde o comunismo está no poder, ele se encarniça em destruir a religião cristã”.

Essas palavras autorizadas nos dão o traçado de um plano:
1. Caráter intrinsecamente inconciliável das doutrinas.

Elas se opõem no que respeita à idéia que têm da realidade, da hierarquia dos bens e dos males, da finalidade que almejam, e enfim da escolha dos meios.

  1. a)  Para o cristão (e em geral para o espiritualista e o homem de religião monoteísta) o mundo material existe com certeza e é obra de Deus; não devemos desprezá-lo, nem negligenciá-lo, no entanto a realidade suprema é Deus e o mundo espirtual, muito mais rico e denso que o mundo material. Qualquer ato de fé proclama essa realidade, e os santos fizeram disso o centro de suas vidas. Para o marxista só existe a matéria, o pensamento não passa de um efeito dela, e tudo o que pertence ao mundo espiritual é pura fantasmagoria, mistificação nefesta que se deve extirpar.

  2. b)  Para o cristão a suprema aflição, a única alienação integral é o pecado, a falta moral. Em comparação a isso o resto é secundário. Para o marxista a noção de pecado é enganadora e irracional, o mal supremo é o sofrimento resultante da opressão social.

  3. c)  Para o cristão a vida dos homens cá embaixo não é totalmente desinteressante, devendo-se combater a injustiça, mas no final das contas a última morada é o céu, e a esperança está no Reino de Deus, e não na técnica e na racionalização dos meios de produção. Para o marxista “o paraíso está na terra que construiremos” (Maurice Thorez, retomando uma expressão de Marx), o resto é quimera odiosa.

  4. d)  Para o cristão existem meios de ação intrincesamente ilegítimos, que não se devem empregar nunca, qualquer seja seu efeito temporal (visto que o pecado é o maior dos males). Para o marxista bom é o que serve à causa da Revolução, e mal o que se lhe opõe36 , de modo que é coisa rara ver as boas almas se espantarem quando o comunismo se vale de procedimentos como a mentira, a calúnia em detrimento do adversário, os processos pré- fabricados, a liquidação física de indivíduos ou grupos etc. Em sua visão haveria grande prejuízo em tolher as ações devido a um escrúpulo pequeno-burguês, já que se trata de tornar os homens felizes de uma vez por todas37.

Como então poderia o cristão colaborar, mesmo no plano puramente prático (?) com o Partido Comunista? Não dá para entender, logicamente falando, como alguns puderam acreditar e perseverar nesse caminho (o que prova que certos espíritos são capazes de rejeitar até às evidências).

2. Condenação formal da Igreja contra o comunismo (este parágrafo se dirige em especial aos católicos, mas o incréu honesto poderá ao menos compreender porque o acordo é impossível).

- Os textos são numerosos. Só citaremos três documentos em especial: primeiro a encíclica “Divino Redemptoris”, de Pio XI (1937)38, que é particularmente severa (“O comunismo revela-se selvagem e inumano a um grau quase inacreditável, e que beira ao prodígio.... Intrinsecamente perverso é o comunismo, e não se pode admitir, em campo algum, a colaboração recíproca, por parte de quem quer que pretenda salvar a civilização cristã. E se alguém, induzido em erro, cooperasse para a vitória do comunismo em seu país, seria o primeiro a cair vítima do próprio erro”). No plano prático o Santo Ofício, em decreto de 1o de julho de 1949, inflige sanções canônicas contra os que colaborarem com o comunismo. Outra decisão do Santo Ofício interpôs-se a 14 de abril de 1959, sempre no mesmo sentido. Acrescentemos enfim as numerosas condenações de publicações e grupos progressistas por Roma, seja em países livres (“jeunesse de l’Église””, “quinzaine” etc.)39 , seja em democracias populares (sobretudo Polônia). É dificílimo acreditar como um católico pode passar incólume, em boa consciência, por cima de tais barreiras.

3. Perseguições anti-religiosas.

Parece que muitos não estão a par desse assunto, ou antes não fazem questão de saber. Sempre repisam, nos meios progressistas, a fórmula comunista: “Nós não queremos mártires”, mas a entendem ao revés: ela significaria apenas que não se deve molestar ou matar padres ou laicos católicos por expresso motivo de ordem doutrinal, mas não impede – até se aconselha – de desqualificá-los e liquidá-los sob pretextos políticos (dano contra a reforma agrária, atividades fascistas etc.), o que sempre é possível onde há um partido todo-poderoso e uma polícia onipresente, onde o comunismo está no poder. Após a tomada do poder, deve-se liquidar a religião.

Na Rússia durante muitos anos se promovera a perseguição sanguinária, que custou a vida de inúmeros cristãos, ortodoxos ou não. Apesar de sob Stálin conservarem o “modus vivendi”, força é não perder de vista as verdadeiras intenções escondidas (sujeitar ao estado soviético o remanescente da Igreja Ortodoxa Russa) e a desigualdade flagrante do estatuto que concedeu aos fiéis a “liberdade de prática religiosa” (até agora não vimos nenhum servidor ou agente do estado usufruir dele...). Enquanto isso, o ateísmo tem a “liberdade de propaganda anti-religiosa”. Ora com todo o ensino concentrado nas mãos dos bolcheviques – desde a escola primária às universidades, além da totalidade das editoras, dos jornais, das revistas etc. – constata-se a disparidade de condições: se a sobrevivência da religião na Rússia prova alguma coisa, é a necessidade de absoluto que habita no coração humano, a necessidade do poder eficaz de Deus, e não certamente a generosidade do comunismo!

- O caso se torna especialmente flagrante quando se trata de países de democracia popular 40 . Os senhores sabem p. ex que quatro entre cinco bispos católicos albaneses são mortos (na prisão, fuzilados)? Que na Romênia a proporção é praticamente a mesma? Quanto à China os fatos são por demais evidentes para que se possa escondê-los... E a Hungria? E a Tchecoslováquia? E a Bulgária? E a Polônia? Possuímos estatísticas e nomes próprios sob os olhos, e lamentamos não poder transcrevê-los todos41.

- Cremos na desnecessidade de insistir sobre a incompatibilidade absoluta entre o marxismo-leninismo e o cristianismo tradicional. Notemos ainda assim a absoluta falsidade da proposta, tão propalada em certos meios católicos franceses, de que só se deve lutar contra o comunismo por orações e reformas sociais, “fazendo melhor que ele” (o que supõe que ele faz bem, caso a fórmula de Joseph Folliet tenha algum sentido).

De fato há um problema urgente e real, a melhoria do nível de vida, sobretudo em alguns países bem desfavorecidos, mas também há:

  1. a)  a luta doutrinal, que opõe ao marxismo-leninismo construções sólidas e “bem duras” – não um chazinho de camomila pseudo-cristão – seja em teologia, seja em filosofia pura ou teoria política. Efetivamente o encanto do comunismo sobre os jovens vem em grande parte da certeza inabalável, do caráter de “sistema do mundo” (v. começo da lição) e

  2. b)  o dever estrito dos poderes públicos (se fizerem seu dever) de pôr freio à sublevação, por meios honestos mas firmes. Não se pode deixar um movimento cujo objetivo é a liquidação de toda a oposição se disseminar à vontade, a não ser que sejam masoquistas (isso acontece). Não somos de forma alguma predicadores da cruzada anti-soviética, como já nos acusaram, mas nos limitamos a anunciar uma doutrina tradicional, recordada por Pio XI quando ele exortava os estados à vigilância nos anos anteriores a 1939.

 

  1. 1. H. Lefebvre, ex-doutor de marxismo, agora rejeitado e excomungado: “Problèmes actuels du Marxisme” (P.U.., 1958), “La Somme et le reste” (L’Arche, 1958); Edgar Morin “Auticritique” (Julliard, 1959); Pierre Fougeyrollas “Le marxisme em question”. Antes deles: Pierre Hervé: “La Révolution et les fétiches” (1956). Sem romper com o partido de vez, Jean Baby: “Critique de base” *Cahiers libres, Maspero, 1960).
  2. 2.  “Le matérialisme dialectique” (P.U.), “Pour connaître la pensée de K. Marx” (Bordas), “Le marxisme” (Que sais-je?).
  3. 3. “La Théorie matérisliste de la connaissance” (P.U.); “Perspectives de l’Homme” (P.U.) etc., etc.
  4. 4. “Le marxisme em Union Soviétique” (Est. Du Seuil).
  5. 5. Nos outros países; entanda-se que não há mais classes na U.R.S.S... V. todavia as tribulações que Milovan Djilas, comunista intimorato, sofreu por ousar ver e dizer o contrário acerca dos estados comunistas.
  6. 6. “Técnica e civilização”.
  7. 7. Em diferentes graus, este é o pensamento que vai de Epicuro e Lucrécio até certos materialistas modernos como Le Dantec, passando por alguns Enciclopedistas como Diderot, d’Holbach, La Mettrie e Helvetius; entretanto os marxistas são mui ambivalentes em relação a eles: são precursores, mas por vezes os tratam com aspereza.
  8. 8. P. ex., a arte, a literatura, etc.. e até a ciência em sua parte abstrata e teórica.
  9. 9. Deixamos sob os expressos cuidados dos professores de economia política tudo o que diz respeito à critica marxista do capitalismo, à teoria da mais-valia do lucro, etc.
  10. 10. De resto é engraçado que a tomada de poder bolchevique, a outubro de 1971 (obra de Trotski e não e Lênin) se deu por métodos técnicos sofisticados, aplicados por grupos pequenos, e não pelos movimentos de massa (v. Malaparte, “La technique du Coup d’État”, Grasset, cap. ‘).
  11. 11. Poder-se-ia escrever sobre o tema uma “história das variações” de orientação da U.R.S.S. e do PC diante da bomba atômica: de extasiados com o modo empregado para pôr o Japão de joelhos (na ocasião da aliança URSS-EEUU), chegando mesmo a insultarem Pio XII, o único que à época criticara o uso da arma nuclear, vemo-los condenar indignados o artefato após o recrudescimento da relação EEUU-URSS nos anos seguintes (a URSS ainda não possuía a arma), patrocinando as famosas campanhas dirigidas às massas. Agora já com provida do armamento, vê-se as autoridades soviéticas, civis e militares, declararem que essa arma, a final de contas, não destruiria a civilização, mas apenas o mundo capitalista. Depois enfim novamente a campanha pacifista. Deve-se esperar a seqüência, segundo as necessidades da ocasião...
  12. 12. V. a história assombrosa do triunfo de Lyssenko, e a eliminação dos adversários sob Stálin in Julian Huxley “A genética soviética e a ciência mundial’ (Stock)
  13. 13. O marxismo não é uma doutrina entre outras, mas a Ciência como tal em vias de desenvolvimento e realização – eis o dogma fundamental dos comunistas. Vamos ver sua fragilidade.
  14. 14. Ver a bibliografia de nosso artigo: “La fin d’une civilization”, boletim do I.E.P., 1961.
  15. 15. Limitamo-nos a remontar a nosso curso mimeografado sobre Crítica do Conhecimento, por falta de tempo de tratar a questão.
  16. 16. Exemplo interessante das reduções simplistas usuais entre os marxistas-leninistas: lênin fala do “clericalismo” de Renouvier. Ora este autor de cariz protestante, democrata e laicista convicto e neo- kantiano notório combateu durante toda sua vida o catolicismo com grande acrimônia. Ele só não era materialista... Por isso é “clerical”!
  17. 17. Não esperem de nós, aqui, a crítica do princípio materialista: qualquer bom manual de filosofia espiritualista, p. ex., a “Psychologie” de Jolivet (Vitte) trás em si a discussão.
  18. 18. Será proveitos a leitura do artigo já um tanto antigo, mas sempre válido, de Drabowitch: “La science et le matérialisme dialectique”. (Mercure de France de 15 de fevereiro de 1936) que dá exemplos bem acertados e por vezes divertidos.
  19. 19. Na “Teoria do Materialismo Histórico”. Para qualquer um um pouco informado dos problemas da filosofia grega, é evidente que, ao contrário do que supunham, Aristóteles funda a teoria sobre dados imediatos da experiência sensível, interpretados à luz dos primeiros princípios da razão. A seguir, toma exemplos (muitas vezes discutíveis, mas sem grande importância) da ciência do tempo, ou da sociedae circundante.
  20. 20. Mesmo no plano dos fatos, não se deve ter pressa em aceitar as imagens de Epinal com seu anti- catolicismo vulgar sobre o Antigo Regime francês, a Espanha, a América Latina. Constatar-se-á aqui que muitas das censuras são caluniosas ou excessivas.
  21. 21. Consultar, p. ex., a “Cosmologie” de Jolivet (Vitte) ou a “Histoire de la Philosophie” de Thonnard (Desclée et Cie).
  22. 22. O que mostra, quase sem querer, o simplismo e a inexatidão do bordão repetidíssimo: para acabar com o comunismo, acabem com a miséria, e não haverá mais problemas. Quem acredita nisso não entendeu nada do espírito e da ação bolcheviques.
  23. 23. “Que fazer?”
  24. 24. V. os livros de Augustin Cochin, notadamente: “Les sociétés de pensée et la démocratie moderne! (Plon). Mais geral, Gaxotte: “La Révolution française” (Le livre de poche).
  25. 25. Para o sentido exato deste termo em Maurras, contra os contrasensos habituais, v. a lição seguinte sobre o pensamento maurrasiano. Trata-se de uma prioridade de condicionamento, não de valor.
  26. 26. “A propaganda marxista impõe a todos, mesmos aos que lhe são hostis, um repertório conceitual que lhes tende a lhes dar uma visão de mundo idêntica a de seus adversários: pensa-se doravante em função dos patamares do progresso dialético, do sentido da história, da luta de classes, como se tais conceitos fossem científicos e designassem realidades experimentais, tais como a temperatura, a massa ou a pressão...’ “Eis aí a admissão do essencial ao marxismo, a interdição da discussão vitoriosa contra ela”, (J. Parrain-Vial, in “Contrat Social”, de maio de 1958, correspondência).
  27. 27. Efetivamente os discípulos de Adler, como o húngaro Wesselenyi, aplicaram as opiniões do seu mestre sobre o problema da guerra, em especial o pangermanismo e o Nazismo. (“O nascimento do IIIo Reich”, 1936).
  28. 28. Isso vai de encontro sobretudo ao argumento demográfico (povos que “extravazam” devido à superpopulação). V. Bouthoul “Les guerres” (Payot) V. cap. IV e VI e cap. II e III.
  29. 29. “Liberdade e organização”, loc. div.
  30. 30. “O iogui e o comissário”, p. 1969
  31. 31.  “L’Irlande”, Ed. Du Seuil, p. 106.
  32. 32. “Técnica e civilização”, p. 175.
  33. 33. Koestler.
  34. 34. É imperativo dizer claramente que tal argumentação, que faz os “cristãos vermelhos” passarem mal, é a mesma que se emprega nas Escrituras. Voltaremos à baila na lição sobre Charle Maurras.
  35. 35. O marxismo pensa (demais) em conjutos e em blocos. Nessa perspectiva torna-se ininteligível o importante papel catalizador dempenhado na história pelas sociedades secretas – Rosacruz, Franco- maçonaria, Santa Vehme, Taï-Ping etc.
  36. 36. “...Nossa moralidade se subodina totalmente aos interesses da luta de classes... Nossa moralidade se deduz dos interesses da luta de classe do proletariado”. (Lênin, no IIIo Congresso de Jovens Comunistas, 1920).
  37. 37. Todos os humanitários se parecem, de Robespierre a Lênin: eles massacram os homens atuais em boa consciência para que seus netos (se sobrar algum) nadem em beatitude perpétua.
  38. 38. O hábito de não se levar as encíclicas em conta está mui enraizada em certos meios católicos, como bem o sabemos. Contudo essa postura é heterodoxa e condenada várias vezes pela Igreja. Sobretudo quando a encíclica de que se trata limita-se a recordar os princípios fundamentais da moral cristã!...
  39. 39. Sobre as fontes do progressismo cristão em nosso país [França], encontraremos mesclada à terminologia hegeliana e a julgamentos mordazes sobre o tomismo uma massa imponente de materiais no recente livro do pe. Gaston Fessard, jesuíta: “De l’actualité historique”, t. II: “Progressisme chrétien et apostolat ouvrier” (Desclée De Brouwer), que põe em xeque personalidades mui em voga...
  40. 40. Notemos de passagem que a situação da Igreja sob Tito, esperança suprema de uns quantos, não é melhor...
  41. 41. O mínimo que podemos fazer é remeter a duas obras, tomadas dentre várias outras: pe. Montserleet: “Les martyrs de Chine parlent” (Amiot-Dumont) e pe. Gherman: “L’âme roumaine écartelée” (édition du Cèdre, 13, rue Mazarine, Paris 6o). 
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