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IV. O Cristianismo antigo

IV

O cristianismo antigo

Em sentido estrito, o cristianismo não é filosofia, mas um sistema de mundo, cuja influência ultrapassou em muito a de todas as doutrinas filosóficas.

Urge-nos falar dele.

Seu significado essencial, sua missão principal, é ensinar ao homem o caminho da salvação espiritual, e não aperfeiçoar diretamente ou muito menos reedificar por completo a estrutura temporal. Hoje em dia alguns deturpam o cristianismo deveras ao fazer-lhe simples meio de o homem ser feliz cá embaixo. Sem dúvida o cristianismo não se desinteressa pelo homem de carne e osso, que vive no tempo, mas olha para além da terra. Seria mutilá-lo reduzi-lo a uma moral vaga. Antes de tudo, é uma doutrina cuja moral é-lhe somente o corolário ou condição de realização. (Daí a importância extrema das questões de dogma, das quais se desinteressam por completo muitos dos cristãos “militantes” ou “engajados”). Não se deve duvidar de que no curso da história há uma tomada de consciência cada vez mais explícita do conteúdo das crenças – mas esta preocupação doutrinal sente-se desde o Evangelho, e mais ainda em São Paulo.

Ademais é preciso ser doido para enxergar no Evangelho um apelo à Revolução: o Cristo vivera em uma sociedade patriarcal, de grandes injustiças e, além disso, em um país ocupado. Ora ele jamais abordara esse duplo problema diretamente. Julga os homens segundo a virtude de cada um e não segundo a raça ou a classe, para as quais não dá importância. (Uma leitura honesta e calma do Evangelho basta para confirmá-lo). Toda a lengalenga sobre o “socialismo”, o “comunismo” ou o “anarquismo” de Jesus pertence à ordem da mistificação.

No entanto o cristianismo não abandona o mundo às forças da violência e da injustiça. Seu grande ensinamento é a Caridade, em sentido forte (sobrenatural, teologal): amor de Deus e do próximo na qualidade de filho de Deus. Trás à lembrança a existência da justiça, que é por sua vez individual e social. Embora não se misture com a política, não é todavia compatível com qualquer doutrina ou instituição: não se pode ser nazi e cristão ao mesmo tempo (nem de resto ser comunista e cristão. Retomaremos o tema nas lições sobre o marxismo).

Sobre a Caridade, v. São Paulo, 1a Epístola aos Coríntios, c. XIII. O cristianismo acarretou, num prazo mais ou menos longo, conseqüências político-sociais consideráveis.

- Vejamos por exemplo o caso da escravidão: o cristianismo antigo não eleva contra ela nenhuma condenação teórica, e não convida os escravos à rebelião violenta (isso nos espanta e escandaliza, e com razão!). Mas ao mesmo tempo exorta os mestres à bondade em face dos escravos, e os escravos a uma obediência digna. (v. São Paulo, Epístola aos Efésios, 6, 5,9; Epístola a Timóteo, 6, 1,2; Epístola a Filêmon; 1a Epístola de São Pedro, 11, 18-20). É que, já que ele professa a unidade da natureza e da remissão de todos os homens (Epístola aos Colossensses, 3, 2), torna logicamente inevitável a exploração do homem pelo homem, o desprezo racial etc., mas os que vêm a ser culpáveis de tais faltas são infiéis ao cristianismo. Havia aí um fermento de grande eficácia concreta.

A imaginação não nos basta para conceber o horror da escravidão na antiga civilização pagã (v. os historiadores desse tema). Os pensadores da época não viam nisso grande problema, sobretudo os romanos, que se adaptaram muito bem a ela (v. Cícero, Horácio, Ulpiano etc.).

No culto, mesclando patrícios e plebeus, homens livres e escravos, admitindo estes às ordens sagradas, a Igreja nascente corta os preconceitos mais enraizados.

Por outro lado o cristianismo inspira continuamente medidas concretas para melhorar a sorte do escravo. Os cristãos alforriaram verdadeiras massas de homens. (Um tal Hermes liberou 1250, no dia de Páscoa; Cromásius, 1400; Melânius o Jovem, 4000). Grande parte dos bens da Igreja consagra- se ao resgate dos escravos. Os imperadores cristãos, após a conversão de Constantino, abrandaram a legislação nesse domínio etc., de forma que a instituição enfraqueceu-se por si, foi-se dissolvendo. A escravidão vai se transformar em servidão. Ora só os ignorantes incondicionais podem confundir os dois institutos. O segundo comporta direitos reais, garantias canônicas no plano familiar (interdição de separar membros da mesma família etc.). Há ademais tipos de servidão cada vez mais atenuados: os especialistas em história medieval ensinam-nos que a servidão, contrário a erro tão difundido, quase que desaparece no curso da Idade Média, tanto mais que os Capetos favoreciam com todas as suas forças as desobrigas (v. atos de manumissão de Felipe o Belo, de Charles de Valois, de Luís o Cabeçudo, e de Felipe V. V. a ordenação de Luís o Cabeçudo frente ao bailo de Senlis: “Conforme o direito natural, cada qual nasce franco (livre)”...)

Haveria outras coisas para se mostrar quanto ao tema da influência político- social do cristianismo: o problema das relações entre poder temporal e espiritual, por exemplo. Nós o retomaremos nas lições seguintes. 

 

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