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A Ariano Suassuna

Tivemos quarta-feira passada na PERMANÊNCIA1, numa sala repleta, que quiséramos mais ampla e mais repleta, uma conferência de Ariano Suassuna sobre o Romanceiro Popular do Nordeste. Depois de uma sábia apresentação de Gladstone Chaves de Melo que esboçou um resumo da vida já bem vivida do mais jovem membro do Conselho Federal de Cultura, e uma interpretação de seu último grande livro, “A PEDRA DO REINO’ (Ed. José Olimpio, 1971), Ariano Suassuna levantou-se, digo melhor, desengoçou-se e começou por dizer que era canhestro e gago, coisas que aliás logo se viram: mas creio que ao cabo de poucos minutos todas as pessoas presentes estavam a sonhar com um mundo em que a humanidade inteira, e principalmente os escritores, fossem canhestros e gagos como Ariano Suassuna; e creio também que no mesmo breve tempo Suassuna sentiu que já ganhara o coração de toda a PERMANÊNCIA — e que a nota principal daquela grande família que o ouvia com tanta atenção e alegria é a amizade, amizade começada na terra e desabrochada no céu —, e amizade na qual já se acha solidamente inscrito o rapsodo que nos trouxe ontem a notícia da maravilhosa poesia popular que são as flores e os cardos de nosso amado e sofrido nordeste.

 

Ariano Suassuna, numa introdução improvisada e desordenada, falou de si mesmo com graça e humildade, como só sabem fazer as almas dotadas e sofridas que têm o vivo sentimento do trágico e do ridículo da vida. Falou-nos de sua composição, de sua heteronomia, entre cujos elementos predominam o palhaço e o rei que todos somos. E aqui, para responder ao susto de uma boa senhora que me telefonara espantada de meu aviso no jornal, onde anunciava a conferência de “um comunista”, Ariano Suassuna explicou que era monarquista e que suspeitava que metade da sala o fosse sem saber, ou sem ousar confessar. Acrescentou seu horror ao marxismo que o bom povo do nordeste energicamente repeliu, como o repeliu também o bom povo camponês da Sibéria. E a demonstração, como se costuma dizer, estava na cara do homem menos pedante que em toda minha longa vida já encontrei. Nós sabemos que há duas espécies da mesma hedionda deformação do homem, manifestada no pedantismo: há o pseudo-científico e desidratado pedantismo dos marxistas, e o floreado pedantismo tão bem representado pelo professor Cândido Mendes de Almeida de que já tratamos na quinta-feira. Não logrando a síntese essencial do cômico e rei, esta casta de retórico só consegue realizar o hemisfério palhaço de nossa mísera condição. Suassuna está nos antípodas dessa raça de anões que em vão se esticam, ele é alto de pernas e de coração.

 

Por essa e outras, receio muito pela mantença do regime (refiro-me à vetusta e quase centenária República) se aparecerem por aí muitos Suassunas, por que na verdade verdadeira somos todos nós, e não só os incorrigíveis franceses que decapitaram sua história, temos nostalgia de um reinado. Lembro-me de um bom jardineiro português, talassa, ultramontano, que plantou flores no jardim de minha infância — flores que ainda perfumam meus sonhos — e que explicava desolado à minha mãe, depois do assassinato do Rei Dom Carlos de Portugal, que a República era o começo do fim do mundo. E quando nós o cercávamos para exigir dele uma explicação mais clara, o bom súdito perene de Dom Sebastião e de Dom Carlos, com gestos largos e simples, que devem ser o dos cantores que Homero compendiou, meu bom português respondia com olhar iluminado:

 

— Ai! os meninos não sabem o que é a gente ver o Rei passar...

 

E o gesto reticente era a comitiva de um Rei que passa diante de todas as lendas do mundo.

 

“Ver o Rei passar”. Certo carnaval antigo, há cem ou duzentos anos dos mil que já vivi, andava em moda uma canção e lembra-me bem o impacto violento que recebi numa esquina quando vi caído no chão um papel com o nome da canção em grossas letras: “Que Rei sou eu?”. Deus nos fez Rei, Homem-Rei, de todas as coisas do mundo inanimado, do mundo de plantas odoríferas e animais que voam, correm ou se arrastam. Mas nós, ai de nós, aonde deixamos esquecida nossa coroa? Quisemos ser Rei do Rei, e aqui estamos nos carnavais da vida, metade-rei metade-palhaço, a indagarmos aflitos: “Que Rei sou eu?”.

 

 

* * *

 

 

Deixemos o regime em suas bases e agora vamos ao Romanceiro que Suassuna  nos trouxe. Confesso que até ontem, talvez por ter nascido no Rocha, nesta metrópole que há muitos séculos, no tempo em que os animais não falavam, foi uma cidade maravilhosa, ou por alguma outra razão com que não atino, nunca dediquei em toda minha vida a devida atenção — agora friso o termo devida — a esta casta de cultura, de ascensão humana, de conquista, que se esconde, como o Romanceiro do Nordeste, sob o disfarce da pequenez à espera de um Homero que a transforme em espanto dos milênios. Não quero assustar a modéstia de Suassuna apontando-o desde já como o Homero das terras nordestinas que não são mais ásperas do que as daquela península espantosa que abrigou o Povo Eleito da Razão, como diz Maritain: direi que ele é o João batista de tal Homero, fazendo votos, entretanto, que sua cabeça não seja pedida por nenhuma Salomé.

 

Eu disse que o Romanceiro se esconde na pequenez. Suassuna reagirá contra quem num revés de não pretender afastar essa cultura como coisa menor, primitiva, infantil, ou simplesmente telúrica. Não há obra de arte que não venha do céu, como não há fruto ou erva da terra que não venha do céu. Será menor por estar mais perto da terra? Mas essa feição é um modo de estar mais perto do céu. Como tão bem frisou Suassuna, o que não convém às obras de engenho e arte é a meia altura.

 

Torno a dizer que é uma cultura pequena sob a condição de afastar o termo de todas as conotações pejorativas, e de aproximá-lo daquela pequenez que Santa Terezinha do Menino Jesus da Santa Face santificou, demonstrando assim que ela é uma das tantas formas da grandeza que neste mundo, aqui e ali, nas mais adversas condições como no prodigioso caso do Aleijadinho, nos é oferecida já que somos reis.

 

E aqui trago ao sábio estudioso que tão modestamente esconde sua grande cultura algumas cogitações que me acudiram ontem numa insônia feliz. Aquela estranha cultura, aquela misteriosa arte “popular” tem duas faces que sempre se encontram nas mais altas expressões do espírito humano: a espontaneidade e a elaboração. Suassuna mostrou num quadro-negro imaginário, com didática excelente, a elaborada e difícil estrutura do metro e rima da poética do Romanceiro do Nordeste. Não se trata de uma pura espontaneidade infantil ou imbecil, que só produz a gracinha de criança e as enchem hoje a meia altura do mundo. Trata-se de uma agilidade que vence as asneiras dos intelectuais que vence uma dificuldade. E aqui me vem o lema que Rilke e São João da Cruz se encontram: “Ao homem é mister ater-se sempre ao difícil”. O brio do homem (a lembrança de sua coroa) está nesse garbo de se ater ao difícil, de realizar proezas. E o Romanceiro, longe de ser uma cultura simplesmente menor, medida em côvados de progresso técnico, ou mesmo em unidades mais altas das culturas mais universais, tem essa marca sem a qual não mereceria efetivamente maior atenção. Tem em comum com os mais altos momentos da história humana esta invariante procura da Verdade e do Bem. Suassuna certamente preferiria, a tão ostensivas e pomposas categorias, os termos “genuíno” ou “autêntico” que são apelidos da Verdade; e não me contestará se eu disser que através de todas as desconcertantes refrações éticas o Romanceiro revela sempre a procura de um Valor, que é outro apelido do Bem. Creio que foi Gustave Thibon, o lúcido colaborador de Itineráires, e amigo de Simone Weil, que disse ser o homem um animal que valoriza, isto é, que se move em busca de um Valor, e de um supremo Valor. E assim sendo, o Romanceiro rompe os limites asfixiantes do Regional, do folclórico, e já anuncia uma grande, uma incomparável contribuição universal, trazida por nosso Nordeste.

 

Falei-lhes em espontaneidade e elaboração, e outra não é a composição da vida mística segundo os mais doutos: nos caminhos da santidade Deus dispôs nossa alma para trabalhar de dois modos: o modo elaborado das virtudes e o modo espontâneo dos dons. Assim também na poesia. E é por esta marca que, desde a lição ontem recebida de meu jovem amigo Suassuna, começo a desconfiar da real grandeza do tesouro ainda meio escondido no Romanceiro do Nordeste.

 

 

* * *

 

 

Agora peço ao meu amigo Suassuna que pondere o que vou lhe dizer sobre o que ele nos disse ontem do que pensa de Santo Tomás e da Teologia em geral. Não pretendo de modo algum convence-lo de que seja indispensável à sua vocação o estudo profundo de Santo Tomás, mas gostaria de conseguir em sua grande inteligência uma brecha que seria uma pequena janela aberta para todo um imenso mundo da vida da inteligência e da fé. De início, e como quem prega um susto, direi que Santo Tomás está muito mais perto do Romanceiro, pela espontaneidade dos dons e pela elaboração das virtudes, pela Verdade e pelo Bem, pela Autenticidade e pelo Valor, do que do pedantismo com que inundam hoje o mundo os teólogos da nova teologia que tanto falam em Povo de Deus sem saberem o que é Deus e o que é Povo.

 

Suassuna tratou Santo Tomás de racionalista certamente sem saber que esse termo se aplica aos Descartes, aos Kants mas não ao Doutor Angélico. Para não se alongar demais, porque meu dadá é o Romanceiro da Suma Teológica direi que é uma ilusão imaginar que Santo Tomás com a Suma pretendeu achatar o insondável mistério da Trindade. Pretendeu apenas oferecer às almas algum arrimo, que sempre precisam, em formular e esquemas que são apenas pobres arrimos. O autor de A PEDRA E O REINO e o paladino do Romanceiro também pediu um quadro-negro para traçar alguns esquemas úteis e instrutivos: certamente nenhum de nós na sala julgou que Suassuna quisesse explicar todo o mistério da alma do Romanceiro com tais esquemas. Assim também, eu diria que a Suma Teológica também foi o quadro-negro de que precisou Santo Tomás para indicar às almas, ao menos, o roteiro, a direção dos primeiros passos da ascensão da Fé nos mistérios de Deus três vezes santo.

 

 

* * *

 

 

Terminando esse longo arrazoado dum agradecimento ainda mais longo, peço a Ariano Suassuna que aceite como sua casa o acampamento de amizade religiosa que nos une na PERMANÊNCIA. 

 

 

O Globo, 11 de dezembro de 1971.

 

 

  1. 1. [N. da P.] Esta conferência ocorreu em dezembro de 1971
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