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Castelo Branco

Inclina o ouvido, jovem leitor, às palavras de um velho amigo, e guarda este nome: Humberto Castelo Branco. Foi o maior Chefe de Estado, o mais decisivo, o mais significativo de todas as qualidades latentes em nosso povo, a mais importante figura da História do Brasil. Não exagero.
 
 
Nenhum outro jamais encontrou no País quadro igual de devastação, de destruição, de desmoralização e de anarquia. Uma greve por dia promovida pelo inimigo cruel e estúpido que já ocupava os postos, desde a Presidência da República; a desmoralização da autoridade sistematicamente promovida nas escolas, nos lugares de trabalho, nas repartições e na família; e um índice de inflação que no ano de 64 chegaria infalivelmente a 144%. O caos. E um caos perverso preparado para entregar a grande nação brasileira ao comunismo russo ou chinês.
 
Foi em março de 64, quando à noite víamos nas janelas dos apartamentos velas acesas em sinal de que lá dentro rezavam pelo Brasil, e quando não víamos saída mas ainda guardávamos uma secreta confiança no bom gênio brasileiro, foi numa noite de março de 64 que um bom amigo nosso, coronel do Exército, nos disse misteriosamente: — Guardem este nome: Castelo Branco. Dias depois, Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil, compadeceu-se de nós, intercedeu por nós, e o milagre se efetivou: as forças armadas se uniram em torno do homem que os céus escolheram. Os mais próximos companheiros de armas e carreira certamente sabiam quem apoiavam, mas os mais distantes e até acaso algum dissidente só mais tarde compreendeu o alcance da escolha feita e apoiada por todos. Eu não conhecia nem de nome o general que fora estagiário da Escola Superior de Guerra num período em que fui designado para falar sobre o problema das comunicações. Foi o próprio Presidente que mais tarde me recordou o debate em que defendi a Light, coisa que naquele tempo tinha algum mérito ou loucura, porque todos os poderes estavam empenhados na depredação da grande empresa a quem tanto devemos, e para a qual o Professor Gudin, com igual coragem ou igual loucura, reclamara uma estátua em praça pública.
 
Deixem-me falar afetuosamente, já que muitos desenvolverão a tese que meu querido amigo Mem de Sá ontem à noite nos propunha: tudo o que aí está hoje, sem nenhuma diminuição dos méritos de cada um e sem desconhecer a contribuição específica do câmbio flexível e dos incentivos fiscais e creditícios para exportação — do atual governo, tudo o que aí está foi semeado, plantado e regado pelo primeiro governo desta fase do novo Brasil. Deixem-me falar afetuosamente já que sobejam, por vários outros lados que me são tão caros, motivos para não calar a justa indignação que não calei nos tempos do Cabo Anselmo e de outros personagens que já voltaram aos ralos de onde tinham saído para a destruição do Brasil.
 
Foi na saída da missa que recebi um primeiro sinal de amizade trazido pela irmã do Marechal Castelo Branco. Ele me pedia que lhe enviasse um livro de Maritain que continha um estudo sobre A Igreja do Céu. Outro talvez ficasse alarmado. Então diante dos escombros institucionais e da febre inflacionária que subia vertiginosamente, diante de todo um programa de reconstrução, nosso Presidente queria ler estudos sobre a Igreja do Céu? Fiquei deslumbrado e agradeci a Deus o milagre que dia a dia se tornava quase escandaloso.
 
Foi uma divergência, manifestada num artigo meu sobre a Reforma Agrária que estavam querendo promover inadequadamente a meu ver, que me valeu um começo de amizade que hoje tem para mim um valor precioso. Estava tranqüilamente na minha mesa de trabalho quando o telefone tocou e, depois de uma breve interposição funcional da telefonista de Brasília, ouvi uma voz nordestina a me dizer com toda a simplicidade que perguntava por mim, e quando me identifiquei logo entabulou a conversação: — Aqui fala o Presidente Castelo Branco e eu telefonei para lhe dizer que meu empenho nesse projeto de reforma agrária não tem o menor intento de agradar facções e ideologias como o Sr. parece recear... E assim fez o Presidente Castelo Branco com o escritor Tristão de Athayde: telefonou-lhe num sinal de desejo de entendimento. E em certo passo de ser governo teve a paciência de telefonar para 36 deputados que resistiam a um projeto, creio que de lei da Imprensa, e a cada um pedia — se o deputado não visse nisto algum inconveniente — uma entrevista, não para pedir seu apoio e muito menos para pressionar, mas para explicar as razões e intenções que não cabiam todas na fórmula apresentada.
 
Lembro-me com especial emoção do dia em que me chamou para o convite de ser o representante do Brasil no encerramento do Concílio. Vendo-me embaraçado insistiu e perguntou afetuosamente: — É por que não tem casaca? Eu lhe empresto a minha...
 
Quase aceitei, pelo gosto de levar à Cidade Eterna, em tão grande dia, a casaca talvez um pouco apertada ou um pouco curta, do homem que Nossa Senhora escolhera para salvar o Brasil. Prevaleceu no caso minha congênita indisposição para solenidades e pompas, e o Brasil teve finalmente melhor representante do que eu, que nessas grandes ocasiões corro sempre o risco de atordoar-me, de perder-me, ou de me achar numa situação chapliniana sem saber como lá fui parar.
 
Em outra ocasião em que também o Presidente me honrou com um convite que também não pude aceitar, a conversa prolongou-se e eu queria perguntar-lhe uma coisa e dizer-lhe outra:
 
— Posso perguntar uma coisa ao meu Presidente?
 
Ele olhou-me com aqueles olhos profundos de que não me esquecerei e, pousando a mão no meu braço, disse-me:
 
— Ao Sr. eu abrirei meu coração.
 
E eu que dantes nunca entrara em palácios, que sou por vocação muito mais povo que fidalgo, embora admire a fidalguia dos que a sabem trazer, vi de repente naquele varão as duas coisas sem as quais não pode haver estadista: a pequenez da condição comum que nos irmanava, e a majestade de um verdadeiro Chefe de Estado designado por Deus. Saí do Palácio Laranjeiras indeciso nas minhas convicções republicanas.
 
(O Globo 20/07/72; republicado em PERMANÊNCIA no. 194-195)

 

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