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Art. 6 ─ Se aos mártires é devida a auréola.

O sexto discute-se assim. ─ Parece que nenhuma auréola é devida aos mártires.

1. ─ Pois, a auréola é um prêmio merecido pelas obras superrogatórias. Por isso aquilo da Escritura ─ Farás sobre esta outra pequena coroa de ouro ─ diz Beda: pode-se entender esse lugar, e bem, daqueles que, por eleição espontânea de uma vida mais perfeita, observam além dos mandamentos comuns a todos. Ora, morrer para confessar a fé é às vezes obra de necessidade e não superrogatória, como se conclui daquilo do Apóstolo: Com o coração crê para alcançar a justiça, mas com a boca se faz a confissão para alcançar a salvação. Logo, ao martírio nem sempre é devida a auréola.

2. Demais. ─ Segundo Gregório, quanto mais livres os serviços tanto mais gratos são ora, o martírio nada tem de livre, por ser um castigo aplicado violentamente por outrem. Logo, ao martírio não é devida a auréola, que corresponde a um mérito excelente.

3. Demais. ─ O martírio não só consiste no sofrimento exterior da morte, mas também na aceitação interior da vontade. Donde o distinguir Bernardo três gêneros de martírio: o de vontade, não acompanhada de morte, como o de João: o de vontade, acompanhada de morte, com o de Estevam; e o nem de morte nem de vontade, como o dos Inocentes. Se, portanto, ao martírio fosse devida a auréola, mais seria ao martírio de vontade que o de simples sofrimento externo, pois, o mérito procede da vontade. Ora, tal não se dá. Logo, ao martírio não é devida a auréola.

4. Demais. ─ O sofrimento do corpo é menor que o do espírito, constituído de dores internas e padecimento da alma. Ora, o sofrimento interior é uma espécie de martírio. Donde o dizer Jerônimo: Posso dizer sem engano, que a Mãe de Deus foi Virgem e mártir, embora em paz tivesse acabado a vida. Por isso diz o Evangelho: Uma espada te transpassou a alma, i. é, a da dor pela morte do Filho. Logo, como à dor externa nenhuma auréola é atribuída, também nenhuma deve sê-la à dor externa.

5. Demais. ─ A penitência é em si mesma um martírio. Por isso diz Gregório: Embora não haja ocasião de sofrermos perseguição, contudo também a nossa paz tem o seu martírio; pois, apesar de não termos que sofrer no pescoço, a crueldade do ferro, entretanto, dentro em nossa alma, traspassamos, com o gládio espiritual, os desejos carnais. Ora, a penitência sofrida exteriormente, não merece nenhuma auréola. Logo, também não é devida auréola a todo martírio exterior.

6. Demais. ─ A uma obra ilícita não é devida a auréola. Ora, é ilícito atentarmos contra a nossa própria vida, como está claro em Agostinho. E contudo celebra a Igreja certos mártires que se suicidaram para escapar à cólera do tirano, como o refere a História Eclesiástica de certas mulheres em Antióquia. Logo, nem sempre ao martírio é devida a auréola.

7. Demais. ─ Pode acontecer seja um torturado por causa da sua fé e sobreviver depois de algum tempo. E contudo esse tal é mártir. Todavia, segundo parece, não lhe é devida a auréola, porque a sua luta não durou até a morte. Logo, nem sempre ao martírio é devida a auréola.

8. Demais. ─ Certos sofrem mais com a perda dos bens temporais que com os sofrimentos no próprio corpo; como o mostra o fato de enfrentarem muitos padecimentos para adquirirem ganhos. Se, portanto, fossem privados dos seus bens temporais, pelo amor que tivessem a Cristo, parece que seriam mártires. E contudo, segundo parece, nenhuma auréola lhes é devida. Logo, a mesma conclusão que antes.

9. Demais. ─ Mártir parece que só é quem foi imolado por amor à fé. Por isso diz Isidoro: Mártires em grego, significa, em latim, testemunhas; porque, para dar testemunho de Cristo padeceram tormentos e até à morte pugnaram pela verdade. Ora, certas virtudes são mais excelentes que a fé, como a justiça, a caridade e outras, que não podem existir sem a graça; e contudo não lhes é devido a elas nenhuma auréola. Logo, parece que também ao mártir não é devida a auréola.

10. Demais. ─ Assim como as verdades da fé vêem de Deus, assim, qualquer outra verdade, como diz Ambrósio; porque toda verdade, seja dita por quem for, vem do Espírito Santo. Logo, se a quem sofre a morte pela fé é devida a auréola, pela mesma razão também o é aos que a sofrem por amor a qualquer outra verdade. O que contudo não é exato.

11: Demais. ─ O bem comum tem prioridade sobre o particular. Ora, quem pela salvação da república morrer numa guerra justa, não lhe é devida a auréola. Logo, também se morrer para conservar a fé no seu coração. Portanto, aos mártires não é devida a auréola.

12. Demais. ─ Todo mérito procede do livre arbítrio. Ora, a Igreja celebra o martírio de certos que não tinham livre arbítrio. Logo, não mereceram a auréola. Portanto, nem a todos os mártires é devida a auréola.

Mas, em contrário. ─ Agostinho diz: Ninguém, que eu saiba, ousou jamais preferir a virgindade ao martírio. Ora, à virgindade é devida a auréola. Logo, também ao martírio.

2. Demais. ─ Coroa é devida ao combatente. Ora, o martírio é uma luta especialmente difícil. Logo, é lhe devida uma auréola especial.

SOLUÇÃO. ─ Assim como vivemos numa luta interior do espírito contra as concupiscências, assim também, contra os sofrimentos provindos do exterior. Por onde, assim como é devida uma coroa especial, chamada auréola, a perfeitíssima das vitórias ─ a virgindade, com que triunfamos das paixões da carne, assim também à perfeitíssima das vitórias contra os ataques externos é devida a auréola.

Ora, a perfeitíssima vitória contra os ataques externos podemos considerá-la à dupla luz. ─ Primeiro, pela magnitude do ataque. Ora, dentre todos os sofrimentos que nos vêm do exterior, o principal é o da morte; assim como das paixões interiores as principais são as concupiscências venéreas. Por onde, vence perfeitissimamente quem ganha a vitória sobre a morte e tudo quanto a ela se ordena. ─ Em segundo lugar, a perfeição da vitória pode ser considerada em relação à causa da luta, i. é, quando pugnamos por Cristo, a honrosissima das causas.

E esses dois aspectos se devem considerar no martírio, que é a morte sofrida por amor de Cristo; pois, o mártir não são os suplícios que o fazem, mas a causa por que é sofrido. Portanto, ao martírio, como à virgindade, é devida a auréola.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Sofrer a morte por Cristo é, em si mesma considerada, uma obra superrogatória; pois, nem todos estão obrigados a confessar a sua fé em face do perseguidor.Mas pode se dar o caso de o ser necessário para conseguir a salvação; assim quando alguém, tendo caído nas mãos do perseguidor, é interrogado sobre  a sua fé, está obrigado a confessá-la. Dai porém não se conclui que não mereça a auréola. Pois, a auréola não é devida à obra de superrogação como tal, mas enquanto implica uma certa perfeição. Por onde, merecerá a auréola quem praticar uma obra assim perfeita, embora não superrogatória.

RESPOSTA À SEGUNDA. ─ Ao martírio é devido um prêmio, não por ser infligido por um agente externo, mas enquanto voluntariamente sofrido; pois, não o mesmo; como diz o Filósofo. Logo, a Cristo não é devida a auréola.

2. Demais. ─ O prêmio de Cristo nunca recebeu acréscimo. Ora, Cristo não teve auréola, desde o primeiro instante da sua concepção, porque então ainda não tinha sustentado nenhuma luta. Logo, depois, não teve nunca auréola.

SOLUÇÃO. ─ Uns dizem que Cristo tem auréola, na significação própria desta; pois, tendo sido vitorioso na luta, merece por consequência a coroa, na acepção própria desta. Mas quem refletir com diligência verá que, embora a Cristo convenha a coroa de ouro ou simplesmente a coroa como tal, não lhe cabe a auréola na sua acepção própria. Pois, a auréola, por isso mesmo que é um diminutivo, implica um prêmio recebido por participação e não na sua plenitude. Por onde, cabe ter auréola aqueles que participaram da vitória perfeita por comparação com aquele que a alcançou na sua plenitude. Ora, Cristo ganhou a vitória na sua acepção principal e plena, por participação de cuja vitória é que todos os mais são vitoriosos, conforme aquilo do Evangelho ─ Tende confiança, eu venci o mundo; e aquele lugar do Apocalipse: Eis aqui o leão da tribo de Judá, que pela; sua vitória. Por isso não cabe a Cristo ter auréola, mas algo de superior donde derivam todas as auréolas. Donde o dizer a Escritura: Aquele que vencer eu o farei assentar comigo no meu trono, assim como eu mesmo, também depois que venci, me assentei igualmente com meu Pai no seu trono.

Por isso, segundo outros, devemos dizer que embora Cristo não tenha propriamente auréola, tem contudo o que é mais excelente que toda auréola.

DONDE A RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO. ─ Cristo foi mui verdadeiramente virgem, mártir e doutor. O prêmio acidental porém correspondente a esses três títulos, não é nada, por assim dizer, em comparação com a magnitude do seu prêmio essencial. Por isso não tem auréola, na sua acepção própria.

RESPOSTA À SEGUNDA. ─ Embora a auréola seja devida a uma obra perfeitíssima que pratiquemos, contudo, considerada como um diminutivo, significa uma certa perfeição participada de quem plenariamente a possui. E assim, é um como prêmio menor. Mas nesse sentido não é que a tem Cristo, que possui a plenitude de toda perfeição.

RESPOSTA À TERCEIRA. ─ Embora a virgindade tenha de certo modo em Deus o seu modelo, não o tem porém de modo a poder reproduzi-lo fielmente. Pois, a incorrupção de Deus, que a virgindade imita, não tem a mesma essência em Deus e em quem é virgem.

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