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Wolfgang Amadeus Mozart

Autores há que num pequeno fragmento de obra, página incompleta ou melodia esboçada, são logo reconhecidos e até saboreados, como se a alma deles estivesse toda a palpitar naquela simples amostra.

 

Machado de Assis é um desses autores inconfundíveis; Mozart é outro. Abrindo Memórias Póstumas de Brás Cubas em qualquer página, sente-se imediatamente o proveito e o gozo da presença bem identificada do autor. Aprende-se uma beleza que não está só na construção engenhosa, que não reside na maneira ou estilo. Sem derrogação da primeira das leis perenes que regem o universo estético — a lei da unidade — pode-se dizer que tais autores conseguem estar inteiros em cada parte da obra. Ou talvez seja melhor dizer que cumprem de maneira especial o mandamento por uma transfusão do espírito do autor na substância da obra.

 

Há dois modos de considerar a unidade da obra de arte. No primeiro, o modo objetivo, diz-se que há perfeição de unidade na obra em que as partes se articulam com tal excelência de harmonia que nos leva a pensar que ali, naquela obra, nada há que se acrescente ou se suprima. No segundo, o modo subjetivo, dir-se-á que existe perfeição de unidade na obra em que o autor se encontra sempre inteiro, total, em cada parcela. E onde domina essa presença contínua do autor — como se vê em três fases de Machado ou em três compassos de Mozart — a subjetividade da autoria passa a dominar a objetividade da obra. Não é Brás Cubas ou Dom Casmurro que estou lendo: é Machado de Assis. Não é a Sinfonia de Júpiter ou a Abertura da Flauta Mágica que estou ouvindo: é Mozart, o próprio Mozart em pessoa.

 

É claro que estou exagerando. A obra de arte é sempre um objeto autônomo, inteiro, cristalizado, solto. Sua objetividade não pode desaparecer, nem ser transformada em mero pretexto. Não posso, a rigor, dizer que seja secundário para mim o que lá diz o autor na sinfonia ou no romance; nem posso chegar à extremidade, que me seduz, de afirmar que ouço distraidamente a teoria do emplastro ou o desenvolvimento da sonata, por estar atento demais ao timbre cordial do autor querido que me visita. A conversação amorosa tem esse caráter especial: todos os assuntos são pretextos. Dentro da infinita variedade que a vida e o mundo proporcionam, o coração enamorado vê no assunto um lugar de encontro, um modo de contato. Falando de eleições municipais, de chuvas ou de incêndios, os namorados estarão sempre falando de si mesmos.

 

Analogamente, e guardadas as devidas proporções, a linguagem do artista é sempre a objetivação de uma subjetividade com vistas a uma outra subjetivação. Salva-se a autonomia e a inteireza do objeto se pensarmos que o autor se transubstancia nele. Aquele emplastro é Machado de Assis transformado em emplastro: aquela sonata é Mozart evaporado em música. Por mais autônomo que seja o objeto feito, não há nunca na arte uma pura objetividade.

 

O artista está sempre falando de si mesmo, embora se diga, com bom fundamento, que não há nada mais detestável do que falar sempre de si mesmo. Tudo depende da “ratio formalis” ou do ângulo, como hoje se diz. Na verdade, o artista traz à tona da obra a maior profundidade de si mesmo, mas quando realiza com autenticidade essa experiência de abismos trará um segredo maravilhoso que tem, ao lado da máxima particularidade, a máxima universalidade, e que pode tornar-se o segredo de quem o ouve. E assim concluo que o artista genuíno, falando de si mesmo no objeto, estará falando de alguma coisa que me diz respeito, que me toca na máxima profundidade de mim mesmo. O encontro afetivo-estético se realiza no objeto que revela o autor e a mim mesmo me revela. E é por isso, por causa dessa força de união da obra de arte, que certos autores conseguem incutir em cada fragmento da obra a cordialidade que aproxima a experiência estética da experiência amorosa. Às vezes, basta ouvir quatro compassos de piano para que a gente sinta a presença de uma visita desejada: Mozart chegou. Está aí. Anda, senta-se, levanta-se, fala. A personalidade do autor domina a objetividade da obra.

 

Seria entretanto um erro bastante lamentável supor que o sentimento da inconfundível presença nos vem do estilo ou do maneirismo do autor. É claro que o contorno da personalidade se reconhece pelo estilo, mas arrisco-me a chocar algum leitor ousando dizer que ninguém é menos maneiroso do que Mozart. Se é verdade que ele tem seus vocábulos prediletos, suas construções preferidas, não é por causa delas que sentimos o autor inteiro e total no fragmento da obra, pois com tal critério não saberíamos distinguir um “pastiche” de um autêntico Mozart.

 

O segredo da transfusão total que se sente na obra de Mozart está na estranha, na desconcertante personalidade que se esconde de nós nos retratos e nas biografias convencionais, e que só se manifesta na música. Habituamo-nos a ver uma cabeça empoada, bem século XVIII, e esquecemo-nos de que Mozart sofreu fundo, na própria carne e na dos filhos, o preciosismo do “ancient régime”. Vemo-lo no brilho das cortes, com espadinha de fidalgo e mangas rendadas, mas nem sempre lembramos que foi ele, Amadeu Wolfgang Mozart, o moço altivo que preferiu a miséria à libré do Conde Coloredo, arcebispo de Salzburgo, que por castigo merecia ressuscitar hoje, para ver que seu ilustre nome só conseguiu vencer a distância de dois séculos a reboque do nome de quem tanto humilhou. Foi ainda Mozart, o manso Mozart, quem primeiro entre os grandes desejou a arte emancipada do oficialismo e dos empregos. Por derrisão suprema ficou gravada em ambiente de fausto e de aristocracia a figura do cavalheiro andante que passou frio e fome para não alugar sua grande alma cantarina.

 

Foi duríssima a vida de Mozart. Com exceção de poucos momentos, viveu sempre entre homens de espantosa mediocridade. Apaixonou-se por Aloísia Weber mas casou-se com a irmã, Constância, como o pastor de Labão. De sete filhos perdeu cinco. Passou fome. Foi meticulosamente humilhado. Como porém não soltou rugidos ou gemidos românticos, contentando-se às vezes em dizer “Cosi fantutti”, nós nos deixamos pensar que sua vida foi amena, ou até leve e translúcida como sua música.

 

Foi entretanto difícil, dificílima, mas dentro dessa dificuldade, cercado de credores, sitiado pelos tolos, acuado, faminto e tuberculoso, Mozart possuiu ou adquiriu, ou desenvolveu a mais estranha, a mais misteriosa facilidade de compor que já se viu. Escrevia a qualquer hora, em qualquer lugar, a despeito de quaisquer circunstâncias. Cabeceando de sono, alta noite ou mal acordado de manhã, sem almoçar ou recostado na cama depois do almoço, com vagar ou com pressa, com disposição ou com febre, Mozart escrevia. Escrevia no meio da casa, ouvindo Constância contar os episódios do dia! Compunha uma abertura meia hora antes do primeiro concerto, e os músicos recebem as partituras com tinta ainda fresca. Atendia a encomendas. Fazia música italiana para italianos e alemã para os alemães, mas sempre música de Mozart. Nenhuma das exigências pitorescas, que alimentam o anedotário dos artistas famosos, se encontram no ofício de Mozart. Não trazia maçãs guardadas na gaveta como Schiller, não espalhava peças de seda no chão como Wagner, nem gritava por quem lhes despejasse água na cabeça ardente como Beethoven. Trabalhava como qualquer modesto artífice. Sentava-se e escrevia. Compunha como o padeiro amassa o pão, ou como o lavrador empurra o arado. De tal modo vivia mergulhado na música, fundido nela, que até chegava a parecer desatento. Sem calmantes ou excitantes sua composição flui como se o seu coração vivesse a se desintegrar em música. E é por isso, creio eu, por causa desse paradoxo de uma vida de espessas dificuldades a se transfigurar em música translúcida, por causa dessa total transposição de alma no objeto de sua arte, por causa, em suma, da integração ininterrupta capaz de tão maravilhosa espontaneidade, é por isso que hoje, ouvindo quatro compassos, sentimos logo a presença total e inconfundível da alma imensa que há duzentos anos vem crescendo como um sonoro universo em expansão.

 

Foi curta a vida de Mozart. Morreu tuberculoso, aos trinta e poucos anos, enquanto arrematava o Réquiem que lhe encomendara um personagem enigmático. Morreu na miséria e no abandono. Chovia muito no dia de seu enterro. O coche chegou sem acompanhamento no cemitério, e o corpo de Wolfgang Amadeu Mozart foi atirado na vala comum.

 

Fevereiro, 1956.

 

 

 (publicado em DEZ ANOS, Editora Agir)

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