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Art. 6 — Se a ira é mais grave que o ódio.

(IIª-IIªº, q. 158, a . 4; De Malo, q. 12, a . 4).
 
O sexto discute-se assim. — Parece que a ira é mais grave que o ódio.
 
1. — Pois, como diz a Escritura (Pr 27, 4), a ira não tem misericórdia, nem o furor que rompe. Ora, o ódio às vezes tem misericórdia. Logo, a ira é mais grave que o ódio.
 
2. Demais — Sofrer um mal e padecer dor por causa disso é mais que sofrer apenas. Ora, a quem odeia lhe basta que a pessoa odiada sofra um mal; ao passo que o irado quer, além disso, que ela o saiba e padeça com isso, como diz o Filósofo1. Logo, a ira é mais grave que o ódio.
 
3. Demais — Quanto mais elementos concorrem para a estabilidade de uma coisa tanto mais estável ela é; assim, o hábito mais permanente é o causado por muitos atos. Ora, a ira é causada pelo concurso de várias paixões, como já se disse2, o que se não dá com o ódio. Logo, é mais grave e mais estável que este.
 
Mas, em contrário, Agostinho compara o ódio a uma trave, e a ira a uma palha3.
 
Solução. — A espécie e a natureza de uma paixão se deduzem do seu objeto. Ora, a ira e o ódio, de um mesmo sujeito, têm o mesmo objeto; pois, como quem odeia deseja o mal ao odiado, assim o irado aquele contra quem dirige a sua ira. Mas, não pela mesma razão, pois o primeiro deseja o mal do inimigo, enquanto mal; ao passo que o segundo o deseja para aquele contra o qual está encolerizado, não enquanto mal, mas enquanto tem um certo caráter de bem, i. é, enquanto o considera como justo, por ser uma vingança. Por onde, como também antes já dissemos4, o ódio consiste na aplicação do mal ao mal; ao passo que a ira, na do bem ao mal. Ora, é manifesto que desejar o mal a alguém, sob a idéia de justiça, encerra menos da essência do mal, do que lhe querer, pura e simplesmente, o mal. Pois, no primeiro caso pode-se estar de acordo com a virtude da justiça, se for por obediência a uma prescrição da razão. Ao passo que a ira só é má porque, no vingar-se, não obedece ao preceito da razão. Por onde, é manifesto que o ódio é muito pior e mais grave que a ira.
 
Donde a resposta à primeira objeção. — Dois elementos podemos levar em conta, na ira e no ódio, a saber: aquilo mesmo que desejamos e a intensidade do desejo. — Quanto ao primeiro, a ira tem mais misericórdia que o ódio. Pois, como o ódio deseja o mal de outrem, em si mesmo, não há medida de mal que o sacie; porque, no dizer do Filósofo, as coisas desejadas em si mesmas são-no sem medida5; assim o avarento deseja as riquezas. Donde o dito da Escritura (Ecle 12, 16): O inimigo, se achar ocasião, não se fartará de sangue. Ao passo que a ira não deseja o mal senão sob as aparências de justa vingança; por onde, o irado se compadece quando o mal que lhe foi feito excede, na sua apreciação, a medida da justiça. E, por isso, o Filósofo diz que o irado se compadece à vista dos muitos males sofridos pelo seu adversário, ao passo que quem odeia de nenhum modo se compadece6. — De outro lado, quanto à intensidade do desejo, a ira exclui a misericórdia, mais que o ódio porque o seu movimento é mais impetuoso, por causa da inflamação da cólera. Por isso, a Escritura logo acrescenta (Pr 27, 4): quem poderá suportar o ímpeto de um espírito concitado?
 
Resposta à segunda. — Como já dissemos, o irado deseja o mal de alguém enquanto este se reveste das aparências de uma vingança justa. Ora, a vingança se realiza pela aplicação de uma pena; e da natureza desta é ser contrária à vontade, ser aflitiva e aplicada em expiação de alguma culpa. Por isso, o irado deseja que aquele a quem castigou o sinta e o sofra e conheça que esse castigo lhe é aplicado por causa da injúria assacada a outrem. Quem odeia porém nada disso lhe importa, porque deseja o mal de outrem como tal. Ora, não é verdade que aquilo que nos causa pena seja pior. Pois, a injustiça e a imprudência, sendo males não causam pena àqueles em quem existem7, por serem voluntários, como diz o Filósofo.
 
Resposta à terceira. — O causado por muitas causas é mais estável quando as causas estão compreendidas numa mesma noção; mas, uma causa pode prevalecer sobre muitas outras. Ora, o ódio provém de causa mais permanente que a ira. Pois esta provém de uma comoção do ânimo, por causa de um mal que nos foi feito; ao passo que o ódio, de uma disposição pela qual reputamos como nos sendo contrário e nocivo o que odiamos. Por onde, como a paixão passa mais depressa que a disposição ou o hábito, assim a ira se desvanece mais rápido que o ódio, embora também o ódio seja paixão proveniente de uma determinada disposição. Por isso o Filósofo diz, que o ódio é mais incurável que a ira8.

  1. 1. II Rhetoric. (cap. IV).
  2. 2. Q. 46, a. 1.
  3. 3. Regula.
  4. 4. Q. 46, a. 2.
  5. 5. I Polit. (lect. VIII).
  6. 6. II Rhetoric. (cap. IV).
  7. 7. II Rhetoric. (cap. IV).
  8. 8. II Rhetoric. (cap. IV).
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